[V.A. Conto-Tradução] Clark Ashton Smith — O Retorno do Feiticeiro (1931)

 


EU ESTAVA DESEMPREGADO POR MESES, e meus bens estavam perto do ponto de não existir. Portanto estive naturalmente eufórico quando recebi de John Carnby uma resposta favorável convidando-me para apresentar minhas qualificações pessoalmente. Carnby avisou uma secretária, estipulando que todos os aplicantes devem oferecer um depoimento preliminar por carta de suas capacidades; e escrevi em resposta ao anúncio.

Carnby, sem dúvida, era um erudito recluso que sentia aversão a contato com longas listas de esperas de desconhecidos; e procedeu a esse meio de lidar antecipadamente com muitos, senão todos, daqueles que eram inelegíveis. Ele havia especificado suas exigências inteiramente e sucintamente, e eram tais que tal natureza barrava até a pessoa mediana bem-educada. Uma noção de árabe era necessário, entre várias; e por sorte eu atingi um certo nível de escolaridade com essa língua incomum.

Encontrei o endereço, de quem a localização tive somente formado uma vaga ideia, no final de uma avenida no topo de uma colina nos subúrbios de Oakland. Era uma grande casa de dois andares sombreada por carvalhos antigos e escuros com uma hera tomando conta. Entre as cercas tomadas de ligustro não-podadas que a tempos reinam por anos. Era separado dos vizinhos por uma vago lote, cheio de ervas daninhas de um lado e um amontoado de videiras e árvores do outro, encobrindo as negras ruínas de uma mansão queimada.

Mesmo aparte do ar de longa negligência, havia algo lúgubre e sombrio no lugar — algo que herdava nos contornos cheios de hera da casa, nas sombrias e furtivas janelas, nas próprias formas de carvalhos tortos e de arbustos estranhamente espalhados. De alguma forma minha euforia se tornou um pouco menos exuberante, conforme adentrei o local e segui um caminho inflexível até a porta da frente.

Quando notei que estava na presença de John Carnby, meu júbilo estava tal que ainda mais tolhido; todavia eu não conseguia dar razão tangível para o arrepio premonitório, monótono, obscuro sentir inquietante que experienciei, e o pesar de chumbo do meu ânimo. Talvez seja a escura biblioteca na qual ele me recebeu tanto quanto si próprio — uma sala quais sombras mofadas poderiam nunca ser dissipadas pela luz diurna ou uma lamparina. De fato, devia ser isto;  por John Carnby em si era muito o tipo de pessoa que eu imaginara que seria.

Ele tinha todas as marcas de um acadêmico solitário que se devotou pacientes anos a alguma linha de erudita pesquisa. Ele era magro e curvado, com uma grande testa e uma crina de cabelo grisalho; e a palidez da biblioteca refletia nas suas bochechas ocas e barbeadas. Mas junto a isso, havia um ar pesado, um temível retraimento mais do que timidez normal para um recluso, e uma incessante apreensão que traía em cada relance de seus olhos escuros febris e em cada movimento de suas mãos magras. É muito provável que sua saúde tenha sido seriamente prejudicada por uma aplicação excessiva; e não pude ajudar mas só imaginar a natureza dos estudos que o fizeram um tremendo caco. Mas havia algo sobre ele — talvez a largura de seus ombros curvados e a forte aquilinidade de suas curvas faciais — que deu-me a impressão de uma maior forma de força e e vigor ainda não inteiramente exaurida.

Sua voz era inesperadamente profunda e sonora.

“Creio que você servirá, Sr. Ogden,” disse ele após algumas perguntas formais, maioria relacionada ao meu conhecimento linguístico, em particular meu entendimento de arábico. “Suas tarefas não serão pesadas; mas quero alguém com disponibilidade a mão a qualquer hora precisa. Já que você deve morar comigo. Posso te dar um quarto confortável, garanto que minha gastronomia não te envenenará. Frequentemente trabalho a noite; espero que não ache as horas irregulares muito desagradáveis.”

Sem dúvida eu devia estar radiante com a assunção de que a posição secretarial seria minha. Entretanto, eu estava ciente de uma relutância fraca e irracional e de um obscuro aviso do mal quando agradeci a John Carnby e lhe disse que estava pronto para me mudar para cá sempre que ele desejasse.

Ele aparentou estar bem satisfeito; e a estranha apreensividade se foi do trejeito dele por um momento.

"Venha imediatamente — essa mesma tarde, se puder,” ele disse. “Eu devo estar bem agradecido de tê-lo aqui quanto mais cedo melhor. Eu vivi a maior parte sozinho durante tempos; e devo confessar que a solidão está começando a pesar sobre mim. Também, tenho sido prejudicado em meu trabalho por falta da ajuda adequada. Meu irmão costumava morar comigo e me ajudar, mas ele partiu em uma longa viagem.”

Retornei aos meus aposentos no centro da cidade, paguei meu aluguel, empacotei meus pertences, e em menos de uma hora estive novamente na casa do meu novo empregador. Ele me colocou em um quarto no segundo andar, que, apesar de abafado e empoeirado, era mais luxuoso em comparação ao salão-quarto que os fundos faltantes me obrigaram a habitar por algum tempo.  Então ele me levou ao seu escritório, o qual era no mesmo andar, no distante fim do corredor. Aqui, explicou-me, a maior parte do meu futuro trabalho seria feito.

Dificilmente pude restringir uma exclamação de surpresa conforme vi o interior da câmara. Era muito como pensei que seria o covil de algum antigo feiticeiro. Havia ali mesa espalhadas com instrumentos arcaicos de uso dúbio, com cartelas astrológicas, com caveiras, cristais e alambiques, com incensários tais que usados pela Igreja Católica, e volumes atados a roídos couros com fivelas de verdigris. Em um canto estava o esqueleto de um grande macaco; em outro, um esqueleto humano; e acima estava suspendido um crocodilo empalhado.

Havia caixas superlotadas com livros, e cada incursão visual sobre títulos indicavam-me que eles eram formados singularmente de uma coleção entendida de antigos e novos trabalhos em demonologia e as artes negras. Havia algumas pinturas estranhas e gravuras nas paredes, lidando com temas relacionados; e a completa atmosfera de um quarto exalando uma junção de superstições quase esquecidas. Normalmente eu teria sorrido se confrontado com tais coisas; porém de algum modo, nessa solitária, soturna casa, além do neurótico, enfeitiçante Carnby, foi difícil para mim reprimir um tremor real.

Sobre uma das mesas, contrastando incongruentemente com essa mistura de medievalismo e Satanismo, estava ali uma máquina-de-escrever cercada de pilhas desordenadas de manuscritos. Num dos finais do cômodo tinha uma pequena, alcova curvada  em que Carnby dormia. No final oposto da alcova, entre os esqueletos símio e humano, percebi um armário trancado que foi colocado na parede.

Canrby notou minha surpresa, e estava me assistindo com uma atenta e analítica expressão que achei impossível de sondar. Ele começou a falar, em tom explicativo.

“Eu fiz o trabalho de uma vida em demonismo e feitiçaria,” declarou. “É uma área fascinante, e um que é singularmente negligenciado. Estou preparando uma monografia, na qual tento correlacionar as práticas mágicas e o culto do demônio de cada era e povo conhecida. Seus trabalhos, por enquanto, consistirá em digitar e organizar as volumosas notas preliminares que fiz, e em me ajudar a rastrear outras referências e correspondências. Sua noção de Arabico será inestimável a mim, porque eu mesmo não sou tão pé no chão nessa linguagem em si, e esrou dependendo  por certas informações sobre uma cópia do Necronomicon no original árabe. Eu tenho motivos a crer que há certas omissões e erros na versão latina de Olaus Wormius.”

Ouvi falar desse raro e fantástico volume, mas nunca o vi. É suposto esse livro ter os conhecimentos de supremos segredos malignos e saberes proibidos; e, ainda mais, o original, escrito pelo árabe louco Abdul Alhazred, foi dito ser inacessível. Me pergunto como veio cair sob posse de Carnby.

“Mostrarei-lhe o volume após o jantar,” Carnby se foi. “Sem dúvidas que você será hábil em elucidar uma ou duas passagens que longamente me enigmatizam.”

A refeição da tarde, cozinhada e servida pelo próprio empregador, foi uma mudança bem-vinda da refeição de restaurante barato. Carnby aparenta ter perdido uma boa porção do nervosismo. Ele estava bem-falante, até começou a exibir uma certa alegria acadêmica após partilhar uma garrafa de Sauterne suave. Ainda, sem razão aparente, estive preocupado por intimações e pressentimentos que não pude nem analisar ou traçar sua fonte certeira.

Nós retornamos ao escritório, carnby trouxe do armário trancado o volume que havia dito. Era abismalmente velho e estava preso a capa de arabescos de ébano com gemas prateadas e escuras brilhando. Quando abri as páginas amareladas, me afastei em repulsa involuntária ao odor que surgiu delas — um odor que era mais sugestivo que a decadência física, como se o livro estivesse sobre envolta de corpos em algum cemitério esquecido e tivesse assumido a forma da dissolução.

Os olhos de Carnby estavam fervendo com a fraca luz enquanto ele tomava o antigo manuscrito de minhas mãos e virava as páginas até o próximo ao meio. Ele indicou em uma certa passagem com seu dedo indicador fino.

“Diga-me o que você tira disso,” disse ele, num tenso e animado sussurro.

Eu decifrei o parágrafo, lenta e com alguma dificuldade, e escrevi uma versão em inglês rústico com o caderno e lápis que Carnby me ofereceu. Então, ao seu pedido, eu li alto:

“É sabido por poucos, mas sem dúvida um fato atestado, que a vontade de um feiticeiro morto exerce poder sobre deu próprio corpo e pode erguê-lo da tumba e performar com isso qualquer ação incompleta em vida. E tais ressurreições são invariavelmente pelo feito de motivos malévolos e para o detrimento de outros. Mais prontamente o corpo pode ser reanimado se todos os membros estiverem intactos; e ainda há casos que o excedente de vontade de um feiticeiro trouxe da morte seus membros fragmentados e os fez seguir seu fim, ou separados ou em efêmera reunião. Mas em cada instância, após a ação ser completada, o corpo retornas ao seu estado anterior.”

É claro, tudo isso era bobagem passageira. Provavelmente foi a estranha nociva absorção com a qual meu empregador atentou, era mais maldita que a passagem do Necronomicon, que causou meu nervosismo e fez-me frenético quando, próximo ao fim da minha leitura, ouvi um indescritível som de rastejar   no corredor afora. Porém quando finalizei o parágrafo e olhei para Carnby, estava mais assustado pela expressão drástica, encarando o medo que sua face tinha assumido — a expressão de alguém tomado por uma assombração infernal. De algum modo, consegui sentir que ele havia notado o estranho barulho no corredor mais do que minha tradução de Abdul Alhazred.

“A casa está cheia de pestes,” explicou, assim que capturou meu relance inquisidor. “Nunca consegui me livrar deles, com todos os meus esforços.”

O barulho que ainda continuava, era aquele em que um rato esteja arrastando algum objeto lentamente pelo corredor. Soava mais próximo, a aproximar da porta do quarto de Carnby, então, após uma intermissão, começou a mover-se novamente e recuou. A agitação do meu empregador estava marcada; ele ouvia com temerosa intenção e parecia seguir seu progresso com um terror que dominava conforme se aproximava e recuava de pouco com o sua recessão.

“Estou muito tenso,” disse ele. “Andei trabalhando muito ultimamente, e esse é o resultado. Até um barulhinho me perturba.”

O som havia morrido agora em algum lugar distante da casa. Carnby aparentou se recuperar a tempo.

“Você poderia reler sua tradução?” pediu. “Eu quero prestar muita atenção, palavra por palavra.”

Obedeci. Ele ouviu com a mesma aparência de profana absorção como antes, e dessa vez não interrompida por quaisquer sons no corredor. O rosto de Carnby empalidecia, como se a última sobra de sangue tivesse sido drenado dele, quando li as sentenças finais; e o fogo em seus olhos vazios estavam brilhando como luz em uma imensidão profunda.

“Essa é uma passagem bem marcante,” ele comentou. “Eu estava em dúvida sobre o significado, com meu árabe imperfeito; e creio ter notado que a completa passagem foi omitida da latina de Olaus Wormius. Agradeço o seu resultado acadêmico. Você certamente a iluminou para mim.”

Seu tom era seco e formal, como se estivesse se reprimindo e segurando um mundo de pensamentos e sentimentos inimagináveis. De algum modo senti que Carnby estava mais nervoso e aborrecido do que nunca, e que meu resultado sobre o Necronomicon havia em alguma estranha via adicionado a sua perturbação.  Ele estava com expressões muito horripilantes, como se a sua mente estivesse confinada em com algum tema repreensível e condenado.

Contudo, parecendo retornar a si, pediu-me para traduzir outra passagem. Essa parecia ser uma exótica fórmula encantatória para exorcismo dos mortos, com um ritual envolvendo uso de raras especiarias árabes com uma entonação apropriada de pelo menos centenas de nomes de carniçais e demônios. Registrei-o tudo para Carnby, que o estudou por um longo período com uma atenção que ultrapassava o mero academicismo.

“Isso também,” ele notou, “não está em Olaus Wormius.” Após analisar novamente, ele guardou a folha cuidadosamente e colocou no mesmo armário do qual tinha retirado o Necronomicon.

“Essa tarde foi uma das mais estranhas que passei. Conforme nos sentamos por hora após hora discutindo os frutos desse volume maldito, comecei a aprender mais e definitivamente que meu empregador estava mortalmente temendo algo; que ele temia estar só e estava mantendo-me com ele por mais do que qualquer outro motivo. Sempre aparentou estar esperando e ouvindo com dolorosas e tortuosas expectativa, e notei que ele dava apenas uma atenção artificial ao que era falado. Entre os estranhos aparelhos da sala, naquela atmosfera de maldade não-manifestada, de horrores indizíveis, a esfera racional da minha  mente começou a fadar lentamente a recrudescência de temores ancestrais sinistros, pontuando tais coisas em meus momentos ordinários. Estava agora a ponto de crer nas mais nefastas fantasias de superstições requintadas. Sem dúvida que por um processo de contágio mental, captei o terror furtivo do qual Carnby se rendeu.

Sem palavra ou sílaba, entretanto, o homem admitiu os evidentes sentimentos que afloravam em seu subterfúgio, porém ele falou repetidamente de uma condição nervosa. Mais de uma vez, em nossa discussão, que ele apenas ousara sugerir que seu interesse no sobrenatural e Satânico era completamente intelectual, que ele, como a mim, não havia crenças pessoais nessas coisas. Ainda assim soube infalivelmente que seus resultados eram falsos; que ele estava conduzido e obcecado com uma fé real em tudo que pretendia ver com lentes científicas, indubitavelmente tinha sido vítima de algum imaginário horror entrelaçado por suas pesquisas ocultas. Todavia minha intuição não deu pistas da atual natureza desse horror.

Não havia repetição dos sons que tinham sido tão perturbantes ao meu empregado. Devíamos ter sentado até meia-noite com os escritos do Árabe louco aberto ante nós. Finalmente Carnby começou a notar o entardecer da hora.

“Temo que segurei você por muito tempo,” disse apologeticamente. “Você deve ir dormir um pouco. Sou egoísta, e esqueci que tais horas não são habituais para os outros como elas são para mim.”

Fiz a recusa formal que sua presunção requeria a devida cortesia, dissera boa noite, e notei minha própria câmara com um sentimento intenso de alívio. Parecia a mim que havia deixado todo o sombrio temor e opressão a que estava sujeito para trás.

Apenas uma luz estava iluminando a longa passagem. Estava próxima a porta de Carnby; e minha porta no distante final, frente a escadaria, estava uma sombra profunda. Conforme eu peguei a maçaneta, ouvi um som atrás de mim, e virei-me para ver no breu um pequeno e indistinto corpo se arrastando do corredor indo até o andar superior, desaparecendo de vista. Estava horrivelmente surpreendido; pois até mesmo no vago relance, a coisa era muito pálida para um rato e sua forma não sugeriria animal algum. Não conseguia jurar sobre o que era, mas os contornos eram indizivelmente monstruosos. Estava parado e tremendo cada membro, e ouvia na escadaria um singular som de batida como a queda de um objeto rolando escada abaixo passo a passo. O som repetia-se a intervalos semelhantes quando finalmente cessou.

Se a seguridade da alma e do corpo tivesse dependido disso eu não teria me virado para a iluminação na escada; nem teria ido até elas para garantir a não-colisão com o antinatural. Qualquer um, caso testemunhasse, teria feito isso.  Invés disso, após estar paralisado por um momento, adentrei meu quarto, tranquei a porta, e fui para cama em uma perturbação de dúvidas ambíguas e terror abstruso. Deixei a luz acesa; e fiquei acordado por horas, esperando a recorrência momentânea daquele abominável som. Porém  casa estava silenciosa como um necrotério e não notei nada. A altura, apesar dos receios do contrário, adormeci e não acordei após muitas horas de sono sem sonhar.

Eram dez horas, conforme contava o relógio. Ponderava se meu empregador deixou-me imperturbado em consideração ou não havia levantado ainda. Vesti-me e desci as escadas para me deparar com ele esperando a mesa de almoço. Ele estava mais pálido e trêmulo desde sempre, como se tivesse dormido muito mal.

“Espero que os ratos não o tenham importunado muito,” ele observou, após um cumprimento preliminar. “Algo muito sério deve ser feito a respeito deles.”

“Não percebi eles ao todo,” repliquei. Por alguma razão era quase impossível para mim mencionar o bizarro e ambíguo evento que vi e ouvi na noite anterior ao ausentar-me. Independente se estivesse me enganado; não importando se tivesse sido meramente um rato ao todo trazendo algo escadaria abaixo. Tentei esquecer o barulho hediondo e repetido e o instante momento do relance dos contornos impensáveis na escuridão.

Meu empregador olhou com uma inquietante acuridade, como se buscasse adentrar no íntimo do meu pensar. O café-da-manhã foi um esforço desolador; e o dia que se seguiu não foi menos sombrio. Canrby isolou-se até o meio da tarde, e fui deixado para meus pertences na bem estocada mas convencional biblioteca no térreo. O que Carnby estivesse fazendo sozinho no cômodo não pude supor; porém eu pensei mais de uma vez ter ouvido a fraca entonação de uma voz solene. Sinais de um horror crescente e intuições pertubantes invadiram meu cérebro. Mais e mais a atmosfera da casa cobria e sufocava-me com uma venenoso miasma de mistérios; e senti em qualquer lugar o cismar de invisíveis e malditas incubações.

Era quase um alívio quando meu empregado convocou-me para seu escritório. Adentrando notei que o ar estava cheio de um pungente cheiro aromático e havia sido tocado pelas espiraladas de um vapor azul em desaparecimento, como se fosse da queima de polpas e especiarias orientais nos censores da igreja. Um tapete ispaão tinha sido movido da posição próxima da parede para o centro da sala, mas não era o suficiente para cobrir inteiramente a curvada marca violeta que sugeria o desenho de um círculo mágico no chão. Sem dúvidas Catnby havia performado algum tipo de encantamento; e pensei na incrível fórmula a qual tinha traduzido a seu pedido.

Entretanto, ele não ofereceu explicação alguma para o que esteve fazendo. Seus modos se alteraram visivelmente e era mais controlado e confiante que antes. De modo quase executiva ele colocou ante mim  uma pilha de papéis que ele queria que eu digitasse para ele. O clique familiar das teclas aliviou-me de algum modo em ignorar qualquer apreensão de um vago mal, e pude quase sorrir para a pesquisa e a tenebrosa informação contida nas notas do meu empregador, quais lidavam principalmente com fórmulas de aquisição de poderes proibidos. Mas ainda assim, sob minha tranquilidade, houve uma inquietação vaga e persistente.

A noite  chegou; e após nossas refeições, retornamos para o escritório. Havia uma tensão nos modos de  Carnby agora, como se estivesse atentamente aguardando o resultado de um teste oculto. Continuei com meu trabalho; mas algumas de suas emoções comunicaram-se comigo, e, de vez em quando, eu me peguei em uma atitude de auscultação tensa.

Finalmente, acima dos cliques das chaves, ouvi o peculiar rastejar pelo corredor. Carnby ouviu-o, também, e sua forma perfeitamente confiante esvaneceu, dando espaço para o mais lastimável medo.

O som se aproximava e era seguido por um maçante som de arrasto, e então, por mais sons de inidentificável arrastar e abafamento de variado tom. O corredor estava claramente cheio deles, com se um completo exército de ratos estivesse carregando algumas carroças pelo chão. E mesmo nenhum roedor ou vários roedores poderiam ter feito tais barulhos, ou movido algo tão pesado como o objeto que estava jazendo. Tinha algo no tipo dos barulhos, algo sem nome ou forma, que causou arrepios lentos invadindo minha espinha.

“Bom Deus! O que é esse barulho infernal!” Eu gritei.

“Os ratos! Eu te digo que são os ratos!” A voz de Carnby ressoava num berro histérico.

Um momento após, adveio um inequívoco bater na porta, próximo a soleira, Ao mesmo tempo ouvi a pesada palpitação na gaveta do armário no fim mais distante da sala. Carnby estava parado ereto, mas agora afundou em uma cadeira. Suas feições estavam apagadas e seu olhar era quase maníaco de espanto.

A dúvida e a pressão do pesadelo tornara insuportável e corri para a porta e a abri, apesar do franco receio do meu empregador. Não tive ideia do que enfrentaria enquanto cruzava a soleira dentro do corredor mal iluminado.

Quando olhei para baixo e vi a coisa a qual quase trombei, meu sentimento foi de espanto e náusea momentânea. Era uma mão humana que havia sido partida no pulso — uma magra mão azulada tipo o de um corpo de velho de uma semana com mofo nos dedos e encravado nas unhas sob as longas unhas. A maldita coisa tinha se movido! Ela havia se afastado para se desviar de mim, e estava rastejando pela passagem aos modos de um siri. E seguindo-a com meu olhar, vi outras coisas além dela, uma das coisas reconheci como o pé de um homem e outra como um antebraço. Não ousei ver o resto. Todos estavam se movendo, afastando-se escondidamente longe em uma procissão de caracóis, e não pude descrever a forma como eles se moviam. Suas vitalidades  individuais eram monstruosas além da resistência. Era mais que a vitalidade da vida, It was more than the vitality of life, mas o ar estava carregado com uma mácula de carniça. Virei meus olhos e retornei para a sala de Carnby. Fechando a porta atrás de mim com a mão tremendo. Carnby estava do meu lado com a chave, a qual ele revirou na fechadura com seus com dedos paralisados que tinham se tornado tão fracos quanto os de um homem velho.

“Você os viu?” perguntou-me com um sussurro seco e hesitante.

“Em nome de Deus, o que era isso tudo?!” Berrei.

Carnby retornou a sua cadeira, cambaleando um pouco com fraqueza. Seus lineamentos foram agonizados pelo amargor de algum horror interior, e ele tremeu visivelmente com um paciente em agonia. Sentei-me ao lado dele em uma cadeira, e ele começou a gaguejar adiante sua confissão inacreditável, meio incoerentemente, com travada inconsequentes e muita quebras e pausas:

“Ele é mais forte do que eu sou — mesmo na morte, mesmo com seu corpo dilacerado pela lâmina de um cirurgião e vi que usei. Pensei que ele não poderia retornar mais depois daquilo — após tê-lo enterrado as partes em uma dezena de locais diferentes, no porão, abaixo dos arbustos, ao pé das vinhas. Mas o Necronomicon estava correto... e Helman Carnby sabia. Ele me avisou  antes de eu matá-lo, ele me disse que retornaria — mesmo nessa condição.

Mas não acreditei nele. Eu odiei Helman, e ele me odiava também. Ele reuniu um poder maior e conhecimento e era mais adorado pelos Obscuros do que eu. Por isso o matei — meu próprio gêmeo, e meu irmão a serviço de Satã e Daqueles que eram antes de Satã. Nós estudamos juntos por muitos anos. Celebramos  a Missa Negra juntos e éramos atendidos por familiares. Mas Helman Carnby tinha ido mais fundo no oculto, dentro do proibido, onde não pude segui-lo. Eu o temi, e não podia suportar sua supremacia.

“Passou-se mais de uma semana — são já dez dias após o meu feito. Mas Helman — ou uma parte dele — retornava a cada noite... Deus! Suas mão malditas rastejando pelo corredor! Seus pés, os segmentos das pernas. Subindo as escadas em algum meio imensurável para me assombrar!... Cristo! Seu terrível torso sangrento deitado aguardando. Te direi, suas mãos vem até de dia para bater e atazanar a minha porta... e tropecei em seus braços no escuro.

“ Oh Deus! Devo endoidar com a nefasta coisa. Porém ele me quer louco, ele quer torturar-me até meu cérebro desistir. Por isso ele me assombra com essa forma em membros. Ele poderia finalizar tudo isso com o poder demoníaco dele. Ele poderia reatar seus membros separados e o corpo e matar-me como eu o matei.

“Quão cuidadoso enterrei seus membros, com que infinita premeditação! E quão inútil foi! Enterrei a faca também, no mais longínquo do jardim, o mais distante possível de suas malignas mãos pruridas. Mas eu não enterrei sua cabeça com as outra partes — a mantive dentro da gaveta ao final da sala. Algumas vezes ouço-o se movendo ali, como você acabou de ouvir há pouco.... Mas ele não necessita da cabeça, sua vontade está em tudo, e ele pode trabalhar ciente através de seus membros todos.

“ É claro, tranco todas as porta e janelas a noite quando descobri que ele retornava... mas não fez diferença. E tentei exorcizá-lo com os encantamentos apropriados — com todos aqueles que sabia. Hoje tentei aquela fórmula suprema que você traduziu do Necronomicon para mim. Também, não pude mais suportar estar só e pensei que pudesse ter auxílio com mais alguém na casa. Aquela fórmula era minha última esperança. Pensei que poderia segurá-lo — é a mais antiga e terrível encantação. Todavia,  como vistes, era inútil...”

Sua voz se arrastava em um murmúrio quebrado, e ele se sentava olhando fixamente diante dele, sem ver, olhos intoleráveis na qual eu vi o indício de loucura. Não pude dizer nada — a confissão expressada era tão inefavelmente atroz. O choque moral, e o sinistro horror sobrenatural quase me deixou estupefato. Minhas sensibilidades estavam abaladas; e não até que eu tivesse começado a me recuperar que senti a irresistível onda de ódio pelo homem que estava ao meu lado.

Me levantei. A casa tinha ficado muito silenciosa, como se o macabro e carrasco exército de cerco tivesse agora se recolhido em suas várias sepulturas. Carnby deixou a chave na fechadura e foi para a porta e a virou rápido.

“Você está saindo? Não vá,” Carnby implorou em uma voz trêmula e alarmada, enquanto estive parado como minha mão na maçaneta.

“Sim, estou indo,” falei friamente. “Estou renunciando meu cargo agora; e irei empacotar meus pertences e deixar sua casa com o mínimo de demora possível.”

Abri a porta e saí, recusando-me a ouvir aos argumentos e clamores e os protestos que ele começou a balbuciar. Por um momento, preferi a face do que quer que espreite no corredor sombrio, independentemente do quão terrível e odioso, em vez de suportar a sociedade de John Carnby.

O corredor estava vazio; mas eu tremi com repulsa a memória do que foi visto, me apressei ao meu quarto. Creio ter gritado alto ao menor som ou movimento nas sombras.

Comecei a empacotar minha valise com o sentimento da mais franca urgência e compulsão. Parecia a mim que eu não poderia escapar cedo dos segredos abomináveis da casa, sobre a qual paira a atmosfera de ameaça atenuada. Cometi erros na pressa, esbarrei sobre cadeiras e meu cérebro e dedos ficaram dormentes com o pavor congelante.

Quase terminando minha tarefa, quando ouvi o som de lentos passos medidos vindo para as escada. Sabia que não era Carnby, pois ele se trancou imediatamente em seu quarto quando sai; eu tive certeza de que nada o atentaria a sair. De todo modo, ele dificilmente desceria as escadas sem que eu o ouvisse.

Os passos vieram para o piso superior e atravessaram minha porta adiante ao corredor, com a mesma morta monotonia repetida,  padrão como o movimento de uma máquina. Certamente não foi a pegada suave e nervosa de John Carnby.

Quem então, poderia ser? Meu sangue paralisava nas minhas veias; não pude ousar concluir a especulação surgia em minha mente.

Os passos pararam; eu sabia que eles haviam alcançado a porta do quarto de Carnby. Seguiu-se um intervalo no qual eu escassamente podia respirar; então eu ouvi  uma terrível batida e um som estilhaçante, e acima disso o grito ressoante de um homem no seu mais alto pico de medo.

Estava impotente para me mover, como se invisíveis mãos de ferro tivessem me alcançado para me restringir; e não tive ideia de quanto tempo esperei e ouvi. O grito desvaneceu  em um rápido silêncio; Não ouvia mais nada agora, exceto um baixo, peculiar e recorrente som que meu cérebro se recusou a identificar.

Não era minha volição, mas uma vontade mais poderosa que a minha, que me arrastou e me impeliu finalmente a descer pelo corredor para o escritório de Carnby. Senti a  presença dessa vontade como uma coisa sobrepujante e super-humana — uma força demoníaca, um maldito mesmerismo.

A porta do escritório foi quebrada e estava pendurada por uma dobradiça. Foi fragmentada pelo impacto de algo mais que a força mortal. Uma luz ainda estava iluminando o quarto, e o som não-mencionável que vinha ouvindo cessou  conforme aproximava ao umbral. Seguiu-se uma quietude maligna e absoluta.

Novamente parei e não pude ir além. Porém desta vez, era algo outro que o infernal magnetismo penetrante que petrificou meus membros e me prendeu-me ante a soleira. Espiando no quarto, o espaço estreito que era marcada pela porta e acesa por uma lâmpada não-vista, vi em um dos lados o tapete oriental e os contornos terríveis de uma sombra monstruosa imóvel que caiu no chão. Grande, alongada, mal-formada, a sombra foi aparentemente lançada pelos braços e tronco de um homem nu que se inclinava para frente com a serra de um cirurgião na mão. Sua monstruosidade estava nisto: embora os ombros, o peito, o abdômen e os braços fossem todos claramente distinguíveis, a sombra estava sem cabeça e parecia terminar em um pescoço abruptamente cortado. Era impossível, considerando a posição relativa, que a cabeça tivesse sido ocultada da vista através de qualquer forma de prenúncio.

Esperei, impotente para entrar ou fugir. O sangue tinha voltado ao meu coração em uma maré de gelo, e o pensamento estava congelado no meu cérebro. Um intervalo de horror sem termo, e então, do lado oculto do quarto do Carnby, da direção do armário trancado, veio um temível e violento acidente, e o som de madeira rachada e dobradiças chorosas, seguido pelo som sinistro e desolador de um objeto desconhecido batendo no chão.

Outro intervalo, e então, sem aviso prévio, testemunhei a terrível e inexplicável desintegração da sombra, que parecia quebrar-se suavemente e facilmente em muitas sombras diferentes, antes que ela se desvanecesse de vista. Hesito em descrever a maneira, ou especificar os lugares, em que ocorreu esta singular ruptura, esta clivagem múltipla. Simultaneamente, ouvi o ruído abafado de um implemento metálico no tapete persa, e um som que não era o de um único corpo, mas de muitos corpos caindo.

Atraído por aquele hipnotismo funesto, como um sonâmbulo conduzido por um demônio invisível, entrei na sala, conheci com uma presciência repugnante a visão que me esperava além do limiar - o monte duplo de segmentos humanos, alguns frescos e sangrentos, e outros já azuis com início de putrefação e marcados com manchas de terra, que se misturavam em confusão abominável no tapete.

Uma faca e uma serra avermelhadas saltavam da pilha; e um pouco para um lado, entre o tapete e o armário aberto com sua porta estilhaçada, ali repousou uma cabeça humana que estava diante dos outros remanescentes em uma postura ereta. Estava na mesma condição de decadência incipiente que o corpo ao qual havia pertencido; mas juro que vi o desvanecimento de uma exultação maligna de suas características ao entrar. Mesmo com as marcas de corrupção sobre eles, os lineamentos apresentavam uma manifesta semelhança com John Carnby, e claramente poderiam pertencer apenas a um irmão gêmeo.

As inferências assustadoras que sufocaram meu cérebro com sua nuvem negra e úmida não devem ser escritas aqui. O horror que eu observei — e o maior horror que eu supunha - teria envergonhado as mais sujas enormidades do inferno em seus fossos congelados. Houve apenas uma atenuação e uma misericórdia: Eu fui obrigado a olhar apenas por alguns instantes para aquela cena intolerável. Então, tudo de uma vez, senti que algo havia se retirado da sala; o feitiço maligno foi quebrado, a vontade avassaladora que me mantinha cativo havia desaparecido. Tinha me libertado agora, assim como tinha libertado o cadáver desmembrado de Helman Carnby. Eu estava livre para ir; e fugi da câmara sinistra e corri de cabeça através de uma casa sem luz e adentrando a escuridão exterior da noite.


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