[S. Artigo] Havia dois cachorros...
No teatro da repetição, sempre se tem o universal do singular, diz Deleuze. Este diferente sempre está por aí vagando sem identidade. Ironicamente, o singular é idêntico ao repetido, a repetição é o geral (?) distinto (?); aí se volta novamente a questão: quem realmente se encontra no teatro da representação? O francês cria uma linha de fuga que retorna eternamente ao do que se foge… Talvez a ouroboros mordeu o rabo dele (dizem que Guattari tinha medo de cobras) – um bom caso de neurose contra o Mesmo.
Antes de perguntar o que se repete, sempre deve-se perguntar o que é a repetição, diz Kierkegaard: “aquele que não compreende que a vida é uma repetição (...) condenou-se a si mesmo…”, aí daqueles que atentam contra a Repetição! A Repetição é nosso dogma onto-teo-lógico. O dinarmaquês ainda estabelece que repetido é sempre aquilo do que se recorda… Anamnese! Proclama o divino Platão: Os eidos só existem porque se repetem aqui ou acolá no mundo sensível, afinal, é sempre o mesmo acerca do mesmo.
O melancólico incessantemente repete: esse maldito ciclo de repetições! Todo o dia a mesma merda! Mesmo ali, Mesmo acolá, sempre o Mesmo acerca do Mesmo.
Mas o que se repete sempre se repete em momentos diferentes, não há repetição se o evento é único. O cachorro repete repete seu viver (ele sobra, não é? Não deixe os deleuzianos falarem que ele morreu!) em uma extensão temporal distinta, diferente do seu colega pete, que não jaz mais entre nós.
Aos que entram nos mesmos rios, outras águas afluem – diz Heráclito. Muitos até hoje pensaram que isso é dizer que tudo corre, tudo flui, pantarrei. Não há maior mentira sobre Heráclito – desconsideram que as águas que afluem jazem nos mesmos rios, “Conjunções o todo e o não todo, o convergente e o divergente, o consoante e o dissoante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas”, o Hierofante afirma – O que é eternamente vivo (Aeí Zoon) é o Fogo (o Um) e sua viragem (tropé).
Afinal, o que é a viragem? Que relação esta tem com a repetição? A viragem é, como dizemos, “uma coisa vira outra”, um Mesmo se repete enquanto Outro, assume uma nova realidade, uma nova máscara, como um teatro, mas o Mesmo só é o Mesmo enquanto Outro – Isso de novo!
A Repetição constitui a Infusão. No assumir do Outro não há privação da suidade do Outro, mas participação erótica, mimese potencializadora – o Uno é a infinitude de todas as múltiplas potencialidades, infinitos modos e atributos – diria Espinoza. O Uno não é fixo, nem meramente um repouso puro em si, mas plenitude omni-infusiva, transbordando essência. O transbordar é o repetir, o jogo imanente do Mesmo e do Outro.
A viragem não constitui uma representação, nem sequer o Mesmo o pode. O Mesmo só é tal pelo Outro e vice-versa, há pura reflexão e íntima determinação dos termos: o essente Logos e a aparente Physís. Puro presentar-se do Absoluto, presença total.
Se colocamos a Repetição enquanto pura presença, Presença Total, é em puro favor da dialética não representativa, fora das estruturas do senso comum, e não à favor de gramatólogos. Derrida diria: haha! Eis que te peguei! Tudo que há aí é presente do ausente, eis que querias ir além das estruturas… Mas, agora, foi a ouroboros da superestrutura gramatical que lhe comeu! Não Deleuze… O que temos a dizer nessa ocasião?
Se a Repetição é pura Presença, ela é a presença imediatamente mais abstrata e vazia, ou seja, pura ausência… Talvez possamos remeter isso ao próprio Hegel: o Ser, puro Ser, é nada mais que nada. Eis a ironia da dialética: pensa que a capturou dentro da caixa representativa, mas ela já saltou para fora dos véus do mero entendimento. A exclusão recíproca não implica em contradição absoluta, mas determinada, negação determinada… A Presença se compreende pela Ausẽncia, sendo os dois termos momentos próprios do Real como uma contradição de Si – toda Ontologia é Hauntologia, todo Ser é Nada (das
Sein ist nicht).
O representar-se é posterior à Repetição, a Repetição condiciona a representação como momento seu. O Outro não é uma mera imagem recortada do Mesmo, mas uma cisão dramática e encênica de um jogo imanente, de tal modo o Mesmo está dentro da própria encenação, tal qual afirma Gadamer sobre a constituição do jogar entre os jogadores e o objeto de jogo. A representação congela no conceito, a Repetição flui internamente ao conceito, ao mesmo tempo que o transcende.
A Repetição reifica o conceito, assumindo o processo de mediação entre os membros do silogismo (U-S-P, P-S-U, etc), ao mesmo tempo que antecede eles em sua configuração metafísica. A repetição não é universal in totum, pois é sempre uma realidade anterior e imparticipada que funda a ordem de inerência enquanto gênero das espécies, assumindo a formalidade causal enquanto princípio matético dos termos que comunica sua similitude – Mas, repito, transcende tal ato de fundar-se. Eis aqui o erro de Deleuze: admitir uma imanência da repetição nas espécies, enquanto o gênero seria uma abstração das peculiaridades comuns entre elas, não escapando do campo representacional típico do aristotelismo de notas comuns = gênero… Afinal, isso é demasiado intuitivo! Quem diria que isso ainda estaria preso na representação?
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