Círculo Hierofânico — Ensaios Vicentinos



 A NOITE DOS DEUSES EM VICENTE FERREIRA DA SILVA


Por: Arthur M. R. Machado

INTRODUÇÃO: PERSPECTIVISMO TEOFÂNICO

 

“A Natureza ama ocultar-se” 

Phýsis krýptesthai phileí  

Fr. 123, Heráclito

Vicente Ferreira da Silva inicia o texto nuclear de sua fase mítico-aórgica colocando em questão o conteúdo das reflexões humanas e, com isso, o próprio pensamento ordenado pelas formas de pensamento pautadas pela construção hominídea. Com isso, ele estabelece uma reflexão epistemológica acerca do conteúdo do mundo, se abstendo da categorização antropocêntrica e realizando o que pode ser chamado de “fenomenologia aórgica”.

            A redução fenomenológica (epoché) da filosofia da mitologia vicentina consiste em “perspectivismo teofânico”: se abster de um ponto de vista que coloque as categorias humanas como fonte de significação do real. No perspectivismo teofânico, tudo o que existe depende da perspectiva dos Deuses para ser, daí o significado de aórgico: não-posto-pelo-homem. Apesar de fazer oposição à doutrina dos filósofos clássicos em diversas ocasiões, Vicente reproduz o que já se encontra presente no diálogo platônico Crátilo:

“Sócrates: ‘Em muitas passagens, principalmente e com maior beleza nos trechos em que distingue os nomes dados pelos homens e pelos deuses com relação às mesmas coisas. Ou não te parece que nessas passagens ele diga alguma coisa grandiosa e admirável sobre a justeza dos nomes? Pois é claro que os deuses sabem chamar com acerto as coisas por seu nome natural’. [...]” (Crat. 392d)

Não será forçoso nem supérfluo esclarecer que na filosofia platônica os poetas sofrem inspiração (mantikén) das Musas (Fedro, 245a) e caem em um tipo de febre divina (manikén). O nome que os Deuses dão às coisas através da boca dos poetas é aquilo que elas são, ou ainda dito em outra fórmula: as coisas são aquilo que os deuses dizem sobre elas através do dizer poético. Na República, é delimitada uma ciência acerca dos Deuses com base no que pode ser dito deles (378e-379a), isto é, a teologia. Nesse sentido, operando uma clara intersecção entre as doutrinas platônicas supracitadas, tem-se que os Deuses são aquilo que eles dizem de si mesmos. Por isso, nas reflexões teológicas em Crátilo, Platão utiliza a autoridade poética de Homero e Hesíodo como ponto de partida para conhecer a realidade divina.

Cabe agora dizer o que essa teologia poética ou fenomenologia teofânica aborda sobre os fenômenos e sobre o mundo. Nos mitos, as divindades possuem um poder metamórfico transbordante: transformam-se em plantas, animais, entes físicos, etc., sem contudo perderem seu status de divindade. Por não perderem tal status, os Deuses não são afetados pela imagem ôntica na qual resulta a transformação em que se manifestam. O conteúdo desses entes é mítico e seria absurdo dizer, depois desses parágrafos propedêuticos, o inverso: que o conteúdo do mito é ôntico. Assim, responde-se à questão fundamental da metafísica: “Todas as coisas são coisas míticas” (Introdução a Filosofia da Mitologia).

            O plano em que se encontram os substratos das coisas é mítico, mesmo que pelos olhos humanos elas não se apresentem como tal, afinal de contas, o mundo nasce (cosmogonia) quando um deus se oculta (teocriptía): “um deus morre como deus e ressuscita como mundo, ou, ainda, um mundo é a última e mais espantosa metamorfose de um deus” (Eudoro de Souza, Mistério e Surgimento de Mundo). O deus é o mistério do surgimento do mundo, é aquilo que significa todo o nexo de relações mundanas — assim como o mistério religioso, que justifica todas as ações ritualísticas e devocionais, isto é, todo o mundo sagrado de uma determinada cosmogonia. Transfere-se a culpa pela significação do mundo para o deus, de modo que o deus seja agora objeto de investigação do significado, alegorizando, portanto, o mundo — isto é, o deus transfere (metaphérein) significado para o mundo. 

Qual seria o significado do deus? Se o deus é o mistério que significa um mundo, então evidentemente ele é sem significados pois não há termo maior para lhe transferir conteúdo: “O deus não é uma coisa, algo de indicável simplesmente, mas sim a série de suas hierofanias, que abrange o amplo espaço de sua fascinação” (Introdução a Filosofia da Mitologia). Acerca dessa dificuldade de capturar a essência do deus, Platão defendeu que o próprio termo “Deuses” o indica: “theoi” que é radicado em “thein” (correr) diz que “todos eles se movem perpetuamente em seu curso” (397d). É plausível designar a hierofania como esse perpétuo correr dos deuses, sendo que os nomes divinos representam “a série de suas hierofanias”. Assim, o mítico não é uma potência que sempre acompanha o que é divino ou sagrado, mas “presença real e efetiva dos deuses e da atuação divina”.

 

A DEUSA NOTURNA

 

“Os que se iniciam (archomenoi) nos mistérios (mysterion) não têm de aprender (matheteusosin) algo, mas antes de ser afetados (pàthosin)” 

Fr. 15 de Aristóteles

 

No capítulo anterior se delimitou algumas coisas importantes para o entendimento dos deuses como fascinações. Vicente utiliza três conceitos para delimitar a atividade dessas “Fontes”: Dispensator, Sugestor e Fascinator. Assim, em três índices, os Deuses são Weltsetzenden Potenzen (Potências Fundadoras de Mundo). O Dispensator é a dimensão epistêmica das Fontes, é “um oferecer transcendental [...], que põe à disposição o cognoscível e desperta em nós apetência do conhecimento”, é o que dispõe a possibilidade de afetação pelas imagens presentes no conteúdo mundial. O campo Sugestivo dessas Fontes não se refere simplesmente ao sugerido, mas é a sugestão enquanto sugerir originário dos entes como imagens presentes no desenho mundial, “as próprias coisas como imagens prototípicas". Como o Sugestor não carrega essas imagens como ponto fixo em si mesmo (por exemplo, houveram vários mundos, míticos ou não, cercados por imagens para diferentes e mesmos objetos): ele é “o domínio projetante do Ser, isto é, o Aberto da liberdade instauradora”. O plano Fascinante, por sua vez, “se dá como polo pulsional erótico e que traça ou des-vela as coisas ao fasciná-las”, sendo a mitologia “a abertura de um regime de fascinação”, é o plano fascinante que projeta a essência mágico-poética dos entes que vão se originar ao serem cantados pelos Deuses. Com efeito, se esclarece o que pode ter soado como mera retórica na defesa da falta de significado dos deuses: é que, se eles instauram, enquanto Fontes Sugestivo-Fascinantes, o significado é através de uma liberdade transcendente a qualquer limitação por necessidade (epapogé) — disso se segue também que o domínio dos deuses é o domínio do não-instaurado, do Nada. 

            Vicente faz metafísica ao dizer que tudo é mítico, sem contudo abandonar a herança heideggeriana de destruição da própria metafísica. Para isso, ele supõe a anterioridade do Nada ao Ser. Isso não podia, contudo, ter sido feito discursivamente, pois o mistério e o mito não se esgotam no logos, tampouco dele dependem. No mistério da Noite surge um silêncio “misológico” (ao menos do ponto de vista filomítico) típico do gênio vicentino. Assim, nos deixemos, então, sermos afetados não somente pela poesia vicentina como pela poesia dos antigos hierofantes “que fazem o mundo originar-se da Noite” (Metafísica, 1071b). À epoché mística deve-se dar devido crédito ao filósofo Pirro de Élis, que além de ter sido o pai do ceticismo também foi sumo sacerdote no templo de Hades (Diógenes Laércio, Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres, 64).

O indicador mais marcante da figura da Deusa Noturna na filosofia de Vicente está em “Fragmentos”. Decido perverter a prosa em versos para facilitar a compreensão:

 

“Quem sabe se a Vida não se origina numa Noite que ultrapassa as nossas Noite”

“As nossas noites seriam símbolos mitigados dessa Matriz abissal”

“O caráter dessas trevas seria a generatio expontanea em todos os sentidos”

 

            Em outro texto, Vicente reflete sobre a morte, retirando seu caráter negativo de privação da vida e lhe ressignificando como “um estado de genialidade”. A morte é o retorno do ente à sua fonte, é a ocultação do ente: “A morte do finito não seria uma perda, mas um internamento num invisível pletórico. Na Noite inicial. Ich gaube an die Naechte [Eu acredito nas Noites]. Afrodite noturna” (Interpretação da Morte). Na teogonia, de Hesíodo a Noite habita o Tártaro Nevoento (744), isto é, habita o reino do Não-Ser (ver os estudos de Jaa Torrano sobre o assunto). Em outro ensaio (Sobre a Natureza do Simbolismo) Afrodite é colocada também como “atração universal dos seres” (tudo que remete ao fenômeno erótico, isto é, atrativo, estaria contido germinalmente na figura mítica da deusa). 

            A caracterização de Afrodite como “Noturna” já transfere o pólo da discussão para um local órfico: nos hinos de Orfeu, a Noite é chamada “theon geneteiran [...] kai andron” (generadora dos Deuses e dos homens, 3.1) e Afrodite é chamada “genéteira theá” (deusa geradora, 55.2). Além disso, Afrodite é “kyprogenès” (nascida da espuma, 55.15), enquanto a Noite é a própria espuma (kyprin, 3,2), por essa razão sendo apelidada de “atadora noturna” (nyktería zeuktéra, 55.3). O aórgico em Vicente Ferreira da Silva se dá como contemplação da Deusa Noturna, indicando o romantismo órfico em seu paganismo policêntrico. 

            No texto “Religião e Sexualidade”, o Filomítico concebe a figura da Deusa-Mãe-Terra (Telus Mater) como imperativa em relação aos homem, que estão para a deusa como “demetrioi” — termo que os subordina à Deméter, a deusa da fertilidade: “A Gaia Primordial ressurge para reger os amantes da Noite da Vida em sua expressão superpessoal e tumultuária”. Os parágrafos anteriores são como uma chave para entender a motivação do Filomítico em recitar o verso rilkeano no final do ensaio: “Der Schoss ist Alle!” (O Ventre é Tudo!) — isto é, é o Ventre, o poder geracional das Deusas, caracteriza com mais preciosidade a tripartição ontológica (Fascinator, Dispensator e Sugestor) operada pelo Ser. 

O enfoque ginocrático na filomitia de Vicente não passa, simplesmente, o cetro do poder monocrático do deus-pai para as mãos de uma deusa-mãe. Assim, a relação entre a multiplicidade dos deuses e das deusas é como a relação entre desvelamento e ocultação, é uma relação complementar. Há um poder efetivante, que não apenas estabelece os entes, mas o faz instaurando internamente tal qual uma “pyros tropai”  — isto é, o fogo que mudando de forma não deixa de ser fogo, e sua forma mudada tem como origem o fogo. A esse poder efetivante dá se o nome de deuses, porém ao poder encobridor, à potência que se refere ao ente atirado à totalidade do Nada, dá-se o nome de deusas.  O conceito de “gottesnacht” no escopo vicentino tem designação iniciática: “A gottesnacht propaga-se como poder diluvial do humano, que começa a se manifestar num pensamento aproximador e submersivo”. Desse modo, a noite dos deuses é tanto ilustração da iniciação aórgica — a inundação pelo vazio noturno e pela numinosidade fascinante das Deusas — quanto a totalidade oculta, uma potência velante-velada. E essa iniciação, que é contemplação noturna e infernal, foi cantada de forma sublime por Hölderlin: 

 

“Possamos em meio à treva encontrar algo palpável,

Propiciar-nos o esquecimento, a sagrada embriaguez, dar-nos 

A palavra transbordante que, como os enamorados,

Seja insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa

E a sagrada memória em vigília até o fim da noite”

Hölderlin, Pão e Vinho.



 
ÉTICA E INTERSUBJETIVIDADE NA DIALÉTICA DAS CONSCIÊNCIAS

Por: Igor Linhares

“Se me extremo
temendo o sentimento
pareço não ter nenhum

 

No nada visto o canto
na acesa ascese
dispo o coração”

- Poema sem título publicado por Dora Ferreira da Silva
na sua obra Uma Via de Ver as Coisas

 

“Qual o orbe próprio em que se acha implantado o nosso ser?” é a questão pela qual Vicente Ferreira da Silva inicia a sua obra Dialética das Consciências. A tal questão Vicente apenas vê resposta através da distinção feita por Viktor von Weizsäcker entre as existências ônticas e as existências páticas, isto é, na distinção entre os seres cujo existir já encontra-se encerrado numa determinação, numa coisa (ντα), e aqueles cujo existir encontra-se num estado de fluxo, num constante sofrer (παθεν) transformações. À consciência, distinta dos objetos corpóreos sempre fixos naquilo que são, o existir corresponde precisamente a uma transformação. A coisa vivente é uma não-coisa, capaz de suportar um sem-número de estados sem que a sua essência seja comprometida por tal.

Ao ser vivo e consciente, o existir apresenta-se não como uma forma, mas como um formar-se, de onde se segue que: “Os interlocutores do diálogo ilimitado das consciências não preexistem em sua identidade própria ao desenrolar-se de suas fases, mas vão tomando corpo e realidade no processo desse diálogo. “Nós somos um diálogo”, dissera Holderlin.” Dêmos uma contraposição eleática à tão heracliteana escrita de Vicente: o que é esse “eu” cuja continuidade parece subjazer todas as transformações pelas quais a consciência passa? “Limites de alma não os encontrarias, todo caminho percorrendo; tão profundo λόγος ela tem é o que anuncia Heráclito, no qual o λόγος aparece precisamente como o ritmo, a razão, a proporção do fluxo consigo mesmo. Na consciência como fluxo de incessante destruição do velho em nome da criação do novo, o eu se apresenta precisamente como a continuidade do fluxo, a afirmação do fluxo como algo próprio a si mesmo.

É em tal ponto que se levanta a problemática do outro: a consciência não tem outro propósito que não a afirmação de si mesma, tornar-se presente, influir no mundo como algo real. Entretanto, tal presença não pode se afirmar apenas através dos objetos õnticos e inertes. É necessário alguém capaz de presenciar, um testemunho de nossa presença no mundo. É necessário um outro. Se Vicente parece, ao menos na maior parte do tempo, indiferente às concepções de Aristóteles, podemos encontrar ao menos um correspondente ao ζον πολτκόν aristotélico na sua afirmação de que o homem, projetando sempre mundo diante de si e relacionando-se continuamente com esse ser exterior a si mesmo, que é o outro, depende da vida em comum sendo uma criatura dessa comunicação existencial. Segundo a expressão feliz de Vedaldi, o homem não tem relações com outros homens, mas é essa relação.

À problemática do outro, segue-se inevitavelmente o solipsismo como problematização da própria existência do outro. Que evidência direta tem a consciência particular da existência de outras consciências independentes à sua? Como saber se tais aparências não se encerram no reino das aparências, como meras projeções de nossa representação do mundo? Ora, é plausível que alguém imagine, como o fez Kant, que as propriedades do mundo externo são meras projeções de nosso entendimento inexistentes nas coisas mesmas, mas é absurdo, como argumenta Vicente, admitir que o mesmo ocorra em relação à figura de seres conscientes cujas vontades são tão próprias e independentes da nossa. A simples possibilidade de que, por exemplo, um homem queira seguir à esquerda, enquanto seu companheiro de viagem deseje seguir à direita evidencia que aí encontramos não uma mera experiência teorética do mundo da parte de um dos homens, mas a interação - às vezes em confluência, às vezes em choque - de vontades próprias a si mesmas e distintas umas das outras. Statt Nicht-Ich -- Du! (“Ao invés de Não-Eu, Tu!”), diria Novalis.

De tais considerações, Vicente delineia a necessidade do reconhecimento. O homem, em sua mais íntima essência, não procura estabelecer-se como coisa fixa e inerte no mundo, mas procura justamente expandir indefinidamente a sua presença no mundo, na Wille zur Macht nietzscheana, a qual já havia se prefigurado na consideração espinoziana de que o conatus (impulso) essencial do ser não é só de preservar-se, mas também de expandir a própria potência de agir. Assim, o Γένοιο οος σσι (Sê o que tu és) de Píndaro, em algo que também poderia ser dito do Γνωθι σεαυτόν (Conhece-te a ti mesmo) délfico, é reinterpretado por Vicente não como afirmação de uma perfeição pré-existente e fixa, mas como busca da verdade existencial do homem enquanto não-coisa.

É na busca pelo reconhecimento que Vicente fundamenta a sua teoria do lúdico como fundamento cultural. O jogo é, para ele, a imposição da liberdade da consciência sobre o mundo fixo das coisas. É no jogo que o homem tem a possibilidade de afirmar no mundo seus valores e atribuir a cada coisa seu significado próprio, no que Vicente observa a atuação das potências demoníacas (δαιμόν aqui entendido no sentido clássico de potência espiritual) do homem em transcender as determinações naturais em nome de sua própria criatividade. Se Heidegger, ao argumentar que o existir consiste no habitar, isto é, na presença, faz referência a um trecho de Holderlin que diz “poeticamente o homem habita esta terra”, no qual a poesia se entende como um deixar habitar, como uma construção de mundo, poderíamos certamente dizer que a atividade lúdica à qual a dialética das consciências aponta é nada mais que a atividade de atribuir ao mundo medida à qual Holderlin aponta no mesmo poema. Ήθος ανθρώπω δαίμων (A morada do homem é o demoníaco”), diz Heráclito, no qual o δαίμων corresponde à imagem do Divino" pela qual, segundo Holderlin, o homem afirma-se como capaz de medir o mundo.

De tal ponto, Vicente nos diz que embora a atividade interpessoal seja sujeita a uma gama infinita de variações e modalidades, seria possível, se alguém desejasse reduzir tal variedade a um número fixo de classificações, traçar todas de volta à dicotomia amor-ódio, na qual o primeiro termo corresponde à unificação das vontades individuais numa vontade comum, enquanto o segundo representa a petrificação do outro como um mero obstáculo à expressão de meu ser. É assim que o amor, enquanto “forma mais importante da comunicação existencial”, aparece como “ato humanizador por excelência”. É no amor enquanto conjunção das vontades que o ser encontra a sua mais elevada possibilidade de realização, presenciando no outro a nobreza de si e em si a nobreza do outro. “O sair-de-si-mesmo do amor é, no fundo, um voltar a si mesmo”, enquanto o ódio, por outro lado, é coroa de uma eterna insatisfação, de uma incapacidade de ver no outro a justa recepção de meu ser. “Em lugar de unir-se ao outro convocando-o para a comunicação existencial, o impulso de dominação reduz o outro a instrumento de seus desejos, negando a própria realidade que pretendia conquistar”.

É nessa atividade amorosa e amigável das consciências em sua união mútua que impõe-se a necessidade de rejeitar como uma deficiência de ser aquela solidão privativa à qual alguns homens, muitas vezes atingidos pelo sofrimento ou pela doença, são afrastados. Entretanto, Vicente não chega aos extremos. Não há aqui lugar para a defesa de um falatório hiperssocial desprovido de qualquer reflexão interna. Diz Olavo de Carvalho, “…nós trazemos todas essas marcas, só que não apenas para mostrar a outros seres, mas para nós mesmos. Somos, portanto, duplamente reais: para os outros e para nós mesmos”, sendo por um raciocínio semelhante que Vicente, citando Karl Jaspers, entende a necessidade de uma solidão positiva, uma solidão preparatória para o encontro com o outro através do encontro de si mesmo consigo mesmo.

Entre todas as considerações apresentadas nessa obra, Vicente, já renomado por sua tão profunda filosofia da mitologia, não deixa de utilizar do tema na discussão da Intersubjetividade: “As tradições míticas milenares falam-nos de fantásticos desmembramentos divinos, em que uma unidade superior se fragmenta em gêneros e espécies. Essa pulverização da unidade e, ao mesmo tempo, a consciência de um elo primogênio não parecem constituir a projeção mítica da possibilidade de unificação das consciências?”, em que a noção cristã da igreja - precisamente chamada κκλησία, assembleia - como Corpus Christi, Corpo de Cristo, pode ser tomada como reminiscência dessa memória primordial, embora um leitor ávido de Vicente possa certamente criticar o antropocentrismo cristão como uma má-leitura dessa ideia. Por outro lado, é o mesmo Vicente quem critica os utopistas do reino de Deus e do amor sobre a terra ao afirmar que o amor sempre contém em si mesmo a tensão da separação, isto é, do ódio, onde devemos observar que a reunião amável das consciências não se dá como algo certo e alcançável, mas como uma esperança e um esforço. Um modelo ao invés de um fato. “A História não é o cenário da Igreja triunfante, mas sim o da Igreja militante”.

Por fim, o que se põe a discutir é a dimensão transcendente do que até aqui foi descrito do ponto de vista humano. “A unidade sintética do transcender é uma força de contínua comoção e superação do já dado. O horizonte da transcendência a que nos referimos, por outro lado, não deve ser compreendido como uma realidade inerte e objetiva, mas como uma irresistível sucção que nos arranca da permanência satisfeita no já dado e cumprido. Não somos proprietários de nossa transcendência, mas súditos de seu poder autentificador”. Se Vicente critica Platão por afirmar que “o amor é um daimon, isto é, um ser intermediário, algo que leva de algo a algo. A vida amorosa não seria nada de valioso e de criador em si, mas unicamente uma forma peculiar de transitividade para o valioso”, ocorre ao menos um mal-entendido ao não compreender que a Ideia do Bem à qual o amante ascende segundo o Banquete não é verdadeiramente um estágio fixo e alcançável, mas um Mistério acima das essências, como diz a República, ao mesmo tempo em que fonte das essências ao qual todos os seres aspiram no desejo de ser. Como Vicente volta a dizer no seu ensaio Para uma Etnogonia Filosófica, “A desocultação do Ser como fascinação traduz-se, nesse caso, na instituição polimórfica de centros pulsionais, em correspondência com a epifania da presença fascinante-numinosa dos deuses. Os deuses não devem ser pensados como representações teoréticas, como espetáculos de uma fruição intelectual, mas como ocorrências trópicas, como suscitação de marés passionais, cuja essência se esgota nessas aberturas fascinantes”. O que temos tanto em Platão, quanto em Vicente é a afirmação de uma força de transcendência cuja distância instiga no ser um impulso atrativo, quer seja esta chamada Ideia do Bem ou Fascinator, uma vez que ambos os nomes denotam precisamente a sua imposição atrativa diante da qual buscamos não só nosso simples existir, mas nosso reconhecimento diante do outro.



 
A MITOLOGIA E O HISTÓRICO EM VICENTE FERREIRA DA SILVA

Por: Abd' Al-Uzzah

 

   Ler o Sr. Vicente Ferreira da Silva em sua fase pagã-existencial é como adentrar numa floresta negra permeada de Anjos, Daemons e Deuses obscuros. Deuses esses que lhe lançam ao Abismo mais profundo do Ser. O aórgico, esse além do homem, nos escapa pela transcendência e inefabilidade, não só nos mantendo longe da compreensão, mas também nos colocando de frente à inexistência e fugacidade do humano, como um mero projeto de infinitas projeções do Ser.

    A angústia, no mais puro sentido heideggeriano[1], é que traz as reflexões teológico-fenomenológicas de Vicente. Na certeza da faticidade da morte, o homem moderno é retirado de seu centro hipostaziado pelo humanismo, herdeiro do iluminismo e do cristianismo. O Deus Homem também se encontra morto junto ao homem, pois a escatologia não gira mais no eixo da encarnação humana de um Deus para salvar algo que já morreu. "(...) Servir o Espírito Santo. Jamais servir a humanidade", diz Lawrence. 

    A angústia nos suscita o desejo de plenitude, a totalidade que o Dasein só "encontra" em sua trágica morte, que para Heidegger é a morte biológica do homem[2], enquanto para Vicente é a morte da finitude, "a morte do finito não seria uma perda, mas um internamento num invisível pletórico." (Transcendência do Mundo, pág. 375). A morte, em sentido puro e simples do cotidiano, não é capaz de suprir a análise existencial do ainda-porvir-da-totalidade em Heidegger, sendo necessária a postulação de uma plenitude pletórica para qual o Dasein tende.

    Tal plenitude não é uma mera ilusão criada pelo homem para seu ir-adiante-no-mundo. Todos os seres buscam a consumação total de seu ser, de tal modo que a constituição teleológica dos entes intramundanos deve ter uma ontogênese própria. E tal ontogênese se encontra no Ser enquanto Sugestor, "falamos em Sugestor porque o ente se nos depara como um plexo de sugestões ou desempenhos historiáveis que promanam de um poder sugestivo." (idem, pág. 132). 

    A necessidade de tal Ser promanador de sentido e sugestão aos entes nos levanta a questão da configuração essencial dele. "A realidade do Ser traduz-se nesse poder mágico-poético, nessa fascinação omnímoda. Além do já conseguido, manifesta-se o Poder consignante transcendente, além do oferecido manifesta-se o Oferecer do ainda não oferecido, além do fascinado se insinua o Poder mágico-encantatório do Ser." (Idem, pág. 104). O Ser é o Absoluto Poder-Ser, a Excessividade de Possibilidade. Herdeiro da tradição nietzschiana, Ser para Vicente é Potência. Potência essa que é Fascinação em Si mesma, que se irrompe como infinita vida pletórica e múltipla como infinitas Deidades. "Os Deuses encarnaram de maneira insuperável a fulguração imediata do Fascinator, os Deuses são essa fulguração mesma, enquanto vida produtiva em si e por si." (Idem, pág. 103). A Infinitude do Ser abarca sua singularidade, ao mesmo tempo que também abarca suas infinitas fascinações.

    Cada fascinação é hipostaziante de um mundo: "cada figura numinosa corresponde a um ciclo atrativo-projetivo, que se propaga indefinidamente." (Idem, pág. 106). Pois "o divino pode... [...] Manifestar-se como vida fluida e difusa que assume diversas formas e aspectos." (Idem, pág. 106). Cada Deus, sendo potencialidade infinita de vida, em si e por si, emana uma cadeia infinita de manifestações, "um regime de fascinação, um tempo passional." (Idem, pág. 107). 

    Um Deus que não fulgura Deuses não é Deus, pois não superabunda Sua própria Deidade. A ontoteologia monoteísta suprime as potencialidades de fascinação do Divino hipostaziando uma unidade e infinitude incomunicável com outras realidades. 

    O Ser é visto em Vicente como "poder essencialmente trópico" (idem, pág. 84), o Ser é o poder se manifestar como Outro sendo o Mesmo. Cada Deus é o trópico (de τροπος, viragem, mudança) do Ser, enquanto Fascinator da própria plenitude. Cada Deidade institui uma série de manifestações, que surgem de suas Vidas em si e por si, e que são atraídas à essência Delas pelo poder erótico-patético - a Vontade Primordial (Urwille) - criando um espaço de apetecibilidades no regime de fascinação (idem, pág. 84). A Vontade é a Criptofania do Ser, pois desvelando um regime de fascinação, permite as possibilidades historiáveis dos entes de tal regime, ao mesmo tempo que se oculta dos entes, sendo a condição transcendental para o Ereignis heideggeriano[3].

    A Vontade dos Deuses é a fonte da qual promana toda a história humana. "A história está ligada a uma Matriz, a uma alteridade instituidora, que desoculta o desempenhável hominídeo." (idem, pág. 289). O ser do homem é um ser participado numa hipóstase originária (utilizando um linguajar neoplatônico). E toda história, por participar nos Deuses,  é determinada por uma meta-história aórgica do Ser, que é o domínio historiável das Potências Teogônicas, o domínio Mitológico. Todo devir no âmbito do desempenhável hominídeo deve seguir-se de uma troca de regência teogônica, uma conversão categórica (Kategorische Umkehr) ou uma conversão pátrica (Vaterlandische Umkehr), que é a mudança de todas as formas e representações diante do trânsito das cifras mitológicas regentes[4].

     Assim, todas as épocas surgem de um prelúdio mitológico que instaura as possibilidades historiáveis dos entes intramudanos, "toda a história tem um prológo no céu e esse prologos, ou logos primordial e originante, é o céu onde transitam as nuvens evanescentes do ente." (idem, pág. 133). Mesmo a negação da Mitologia como realidade em nossa época constitui um evento mítico, o evento da Gottesnacht (Noite dos Deuses), a ocultação das Origens do cenário mundial, que se deu com a "centrofocalização" do divino no homem pela figura de Jesus Cristo. A cristomorfia resultou na ocultação do divino fora do homem, pois a história do mundo era a história da queda e salvação da humanidade por um deus humano. "Antes da revelação cristã, antes do advento pleno da subjetividade e da existência sequiosa de si mesma, o homem pagão era o reflexo de um elemento estranho. A vida representava uma potência religiosa teomórfica e não antropomórfica..." (idem, pág. 285). A queda do divino em tudo para o divino excentricamente humano constitui a antropomorfização da  Lebensanchauung (visão-de-mundo) na história ocidental, resultando na ocultação das Potências Originárias.

     Entretanto, a Gottesnacht não é, como dito anteriormente, uma privação absoluta da presença dos Deuses, mas sim, a presença teocríptica dos Deuses da Noite na luz dos homens (por mais contraditório que pareça uma presença ocultante). A sensação de Gottesferne [Deus(es)-Longe], é o que possibilita a angústia existencial do homem, que o faz cair no Poder mágico-instituidor do Nada Divino, pois como diz Vicente: "(...) há uma força mágico-instituidora da noite." (Dialética das Consciências, pág. 346). Essa iluminação noturna franqueia a possibilidade de uma nova fase inaugural do Paganismo, um retorno dos Deuses por meio da Teofania dos Deuses no seio da Noite, "(...) o reencontro empolgante de uma nova fase do divino" (Transcendência do Mundo, pág. 113).

    Pelo movimento da "origem absorvendo em si todo o originado" (idem, pág. 131), o Nada realiza o movimento de epistrophe de todo o originado na época vigente. Tal absorção na íntima indeterminação do Ser resulta numa expansão pela excessividade de poder-ser do vazio indeterminado do Nada, resultando numa nova revelação dos Deuses, não mais como ocultos, mas presentes na ordem humana.


[1] "A angústia (Angst), porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio do Dasein. Na angústia, o Dasein dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade da sua existência." (Ser e Tempo, 266a).

[2] Apesar da hermenêutica existencial-fenomenológica heideggeriana evocar um sentido existencial da morte ao invés de um sentido meramente biológico, a possibilidade mais extrema do ser-fim do ser-aí (Dasein) é a morte biológica do homem. Para uma superação de tal projeto limitado pela onticidade fisiológica, é necessário um sentido eminentemente ontológico, que é a visão de morte na Mitologia como superação da finitude. O homem que "morre biologicamente" não morreu de verdade, apenas assumiu outra configuração biológica ou sutil (via μετεμψύχωσις), o único que verdadeiramente morre é o que aniquila sua finitude, se absorvendo no pleroma dos Imortais.

[3] "O Ser vige como acontecimento apropriador da fundação no aí (Ereignis der Dagründung); abreviadamente: como acontecimento apropriador [...] Acontecimento apropriador da fundação no aí quer ser pensado como genitivo objetivo, o aí (das Da), a essenciação da verdade em sua fundação (o que é mais originário do Ser-O-Aí) torna-se acontecido (wirder-eignet), a fundação, ela mesma, ilumina o ocultar-se, o Acontecimento apropriador. A vira-volta é a pertença da verdade (clareira do ocultar-se) à essência do Ser."(Tempo e Ser, pág. 268).

A tradução utilizada traduz Ereignis como "acontecimento apropriador", mas particularmente prefiro traduzir, assim como o professor Ronaldes de Melo e Souza, por evento criptofânico, pois incide bem no fenômeno que Heidegger quer captar: um desvelamento (-fania) ocultante (cripto-) que permite a fundação do aí (das Da) do ser-aí (Dasein).

[4] Transcendência do Mundo, pág. 291 até 293.


 



 


 
"O Que Rasteja no Chão Contra Aquilo que tem Altura."
COMENTÁRIOS A UMA HUMANIDADE FUTURA

 

Por: Vinicius H. de Lima

 

"O homem é sempre mais do que uma coisa, pois é justamente,
em sua radicação ontológica, a condição transcendental do Ser-coisa."

V.F.S.

 

1

Se apresenta como homem na investigação Vicentina o seu propósito de Ser e seu Fundamento de Ser, não a mera constituição de algo já formado — Vorhandensein, Ser-dado; ele [o homem] não produz sua própria identidade e forma quando, então constitui-se como forma organizada, quando está dado ao ser si mesmo. O inserir-se agora como novo conceito de homem é, investigando as formas de nascença do ser de um povo — sendo através de místicos, poetas, filósofos, conduz-se através do tronco da linguagem que não é inserido após si, mas através de sua própria constituição — deixando de lado o ramo da origem do homem meta-histórico preconizado pela doutrina cristã; roga, então, o surgimento do Heleno, do Romano e do povo em particular pela sua própria instituição meta-humana, o homem como produto da divindade. Aqui reside a diferença que penetra no seio do cristão — Vicente nega o caráter pecaminhoso —  porque na residência da Torre Babilônica:

    "Os povos não se dividiram, entretanto, porque, sendo diversos, começassem a falar na “confusão das línguas”, mas, pelo contrário, pelo fato da língua geral se contrair na particularidade das propriedades e dos sentidos, foi que os povos se disseminaram sobre a terra. A confusão das línguas precedeu a confusão dos povos e a condicionou. “Pois as línguas necessárias para se compreender estavam confundidas e disseminadas e é porque os povos não conheceram nem compreenderam a propriedade dos outros.” A Torre pela qual as línguas se dispersaram e confundiram é, como já dissemos, uma alegoria, uma imagem, ou melhor, a imagem das diferentes imagens que os homens construíram de si mesmos e de seu Deus, a imagem da ontogênese dos povos. Cada povo passou a admitir que, na expressão imaginosa de Böhme, as propriedades de seu material regional eram preferíveis, para a construção da Torre, às dos outros; e segundo o povo que obteve a preeminência do momento, a Torre foi construída segundo uma propriedade determinada.

    "Mas os homens introduziram o Verbo originário de Deus “numa forma semelhante a um vaso e não falavam senão com o vaso e não compreendiam mais o Verbo de Deus”. A vontade privativa, a força centrípeta e a vontade que tendia para si mesma se apossaram do alfabeto e os homens pintaram sobre a tela do céu a imagem de suas múltiplas vontades. Böhme supõe que o mistério de Babel implica uma espécie de decadência e alienação da força original da linguagem que foi compelida e encapsulada numa forma exterior."

Vicente Ferreira da Silva, Dialética das Consciências - A Contribuição de Jacob Böhme.

Vicente então toma pelo avesso o papel da origem dos povos, não é mais a decadência a linguagem — tomada em sua divisão o subproduto de mais repetições da distância de Deus; o homem tem a comunicar somente o âmbito da Vontade de suas próprias formações aórgicas, como comunicará em sua fase tardia de pensamento. Justamente aqui, começa o Novo Conceito de Homem a tornar-se latente e com Heidegger e o insight que desde Böhme e logo seguido por Schelling: o homem está ansiando por sua nova concretude espiritual que sente preso nas garras do secular, isso vem em nossa causa para mostrar como o indivíduo está em íntima luta resultando no que o ressentimento de muitas decaídas promulgadas pelo advento cristão impelem desde a dominância de sua visão adâmica, vem derivando perante a constituição psico-religiosa do homem.

"Não é, portanto, vencendo em nós a concreção histórica que podemos ascender à nossa essência humana, mas sim abraçando o movimento do querer que se quer a si mesmo e da palavra que configura o mundo de nossas oportunidades e desempenhos históricos."

Ibid.

"Não é entre os homens comuns, que vivem com kurzen, vorgemessnen Schritte” (Passos curtos, premeditados), que poderemos encontrar einen Mannenwerk (Uma obra humana). Para Hölderlin todos os bens e alegrias dos homens, a terra com seus frutos e festas, fervores e comunhões, são devidos aos deuses generosos. As ocupações particulares e pacíficas não são garantidas pelo favor dos deuses. Quem, entretanto, traz aos homens a proteção divina e o lume espiritual é o poeta. As ocupações múltiplas da vida supõem uma ocupação mais original — a do poeta - que as instaura e garante em seu círculo bem medido. Somente através dessa tarefa primeira e eminente podemos compreender qual a ideia que Hölderlin alimentava acerca da essência do homem. No espírito do poeta, o Espírito universal amadurece seus pensamentos e desígnios. Transcendendo todas as tarefas e ocupações particulares, arrostando a cólera dos deuses, o poeta, como a águia que precede a tempestade, voa em direção aos kommende Gotter” (os Deuses Vindouros). O seu coração vive envolto numa atmosfera de presságios, dividido entre a venturosa expectativa de auroras festivas e o penoso sentimento das coisas que se cumprem. O poeta vive em função das potências que convocam os homens para o cumprimento de seu destino, que imprimem um novo sentido e uma nova interpretação aos comportamentos coletivos e históricos."

V.F.S. - D. das Consciências, A Intuição Hölderliniana do Mundo

O Expressionismo em específico operou com lógicas de fundo Hölderliniano que como se verá mais a frente, profuso em influências dos mais distintos ramos, operou no interior do sujeito a perspectiva de um abatimento e um novo Crepúsculo dos Deuses conforme a insurgência do Zeitgeist medrava nos poetas uma nova frente de espírito que revoltava-se com o declínio dos valores, um certo resquício do romantismo alemão — principalmente do Sturm and Drang — Der Sturm uma das principais revistas, incidia com a revaloração do homem e um certo "humanismo" que não parece seguir inteiramente com o conceito de fundo Renascentista, onde o homem teria a autonomia sobre o Mundo e suas causas, o homem recusa o momento dado mesmo ele sendo a aparente única realidade, faz parte da poética apocalíptica do primeiro decênio dos anos 1900, pode-se ver na literatura expressionista de Franz Werfel uma nova humanidade, mais focada na experiência de irmandade:

O meu único desejo, Oh Homem, é ter contigo afinidades!
Sejas tu negro, acrobata, ou repouses no fundo seio maternal,[...]
—Franz Werfel, Ao Leitor (trad. João Barrento)

Visões de novos mundos apartados da realidade aglomerante da impregnação materialista:

Eu estou sobre as florestas
verde e brilhante
pairando acima de todas
eu, o Homem.
Eu sou órbita no Cosmos
movimento em flor,
sustentáculo sustentado.
Eu sou sol entre os astros que giram,
eu, o Homem,
sinto-me profundamente,
perto do alto sol que giras no cosmos,
eu, o seu pensamento.
O meu cabelo tem folhagem de estrelas,
de prata é o meu rosto
eu brilho,
eu,
como Ele,
o cosmos;
O cosmos
como eu!
—Kurt Heynicke, Homem (ibid)

Terrores visionários com Georg Heym:

[...] Estende na rua a mão de carniceiro.
Um mar de fogo varre, num estremecer,
Toda uma rua, que acaba num braseiro
Até que o dia tarde a amanhecer.
— O Deus da cidade (1910)

Este último como que um aviso da Grande Guerra desconcertante... O panorama ideológico do movimento não se restringe a isso, possui muitas facetas além do proposto aqui. 





 

2

“Não é com as coisas que o homem tem que se haver no processo metodológico, mas com as potências que se levantam no interior da consciência e a cujas impulsões ele obedece. O processo teogônico que dá nascimento à mitologia é um processo subjetivo na medida em que desenrola na consciência e se manifesta pela formação de representações; mas as coisas e, por conseguinte, também os objetos dessas representações são as potências teogônicas reais e em si, as mesmas sob a influência das quais a consciência é primitivamente aquela-que-põe: Deus.”

V.F.S. D. das Consciências - A Contribuição de Schelling

 

O plano de um povo é reflexo da irrupção Sagrada, algo Ab Origine como Eliade nomearia, traz paradigmas, Formas Eternas que os poetas antigos e atuais reconhecem de algum modo:

"Para sentir em torno à terra ondeando
Um sonho, sempre um sonho além rolando
Vagas e vagas de imortais oceanos.

— Cruz e Sousa, Últimos Sonetos

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...

— ibid, ibid,

Ah! Volta à infância dos primeiros beijos,
Dos momento sidéreos,
Volta à sede dos últimos desejos,
Dos primeiros mistérios!"

-- ibid, Faróis

Vicente enquanto examina a posição de Schelling concebe:

"A luz que conforma a sua perspectiva própria, o seu particular projeto do mundo, o princípio de inteligibilidade de todas as coisas, têm seu fundamento último na abertura de seu panteão religioso. Com esse acontecimento se põe uma escala de valores, um positivo e um negativo, uma salvação e uma perdição, e, em geral, um conjunto de polaridades que tornam possível a ação historicamente relevante. Assentada essa conexão profunda entre o surgimento das nações e as manifestações da consciência religiosa, Schelling, para explicar a evolução e a multiplicidade das formações mitológicas[...]"

Com isso traça-se um panorama de modo a ver o conjunto dos componentes míticos como formas dotadas de auto-modulações, em que cada mitologia específica compõe-se de mitologemas que a um momento podendo-se traçar equivalências ou individualidades assentadas sobre um determinado panorama mítico; no caso a comentar, trazendo um texto posterior de Vicente chamado "A Fé nas Origens" o autor lê através de Nietzsche uma espécie de análise da consciência clamante a Natureza, criticando ao mesmo tempo a situação desse contexto que a partir do dualismo cristão, torna a ideia como um funcionamento impar a consciência do homem, estando dela afastado por uma espécie de "degeneração" que lembra a leitura de Böhme a respeito da origem dos povos e que com o tempo, tal separação de Natureza e Homem veio a arraigar uma leitura e uma postura que arrastou para o homem moderno e burguês uma fantasia ficcionalizante do passado e comenta:

"Na consciência do homem das cidades, a natureza é mero cenário, instrumento terapêutico e nunca lei interior de vida, desde que as leis do projeto natural sejam confeccionadas pelo próprio homem."

Posteriormente conclui que há uma defasagem e também uma superficialização da própria noção de Natureza causada por essa separação dualista da concepção do homem fora da Natureza, invés de ver-se como integrado, participante da impulsão vital de viés pagão e partindo "é uma presença envolvente, omnicompreensiva e tangível do não-feito-pelo-homem; é a selva em nós e a adoração desse aspecto quase sempre encoberto por uma personalidade ou uma máscara fictícia e que constitui essa possibilidade à qual podemos retornar.[...] Acreditamos em todas essas mensagens de fé nas origens se expressa uma variação dos conceitos religiosos fundamentais e uma nova capacidade de perceber extensivamente certas forças cósmico-espirituais, certos aspectos do mundo que multiplicam politeísticamente os centro de referência da conduta."

É possível notar na história — vemos uma ânsia forte como na resolução artística dos poetas ao final da decadência fin-de-siècle e de seu simbolismo reagir ao pós-romântismo que alastrou em toda Europa e Brasil, o fim-de-século era uma nova luz a reagir contra o peso espiritual solapante do humanismo que vinha configurando a humanidade desde a Cruz, e culminando seu processo interior (o Iluminismo e o marxismo consequente) nessa antiga concepção resistente do homem como posto a sempre ser o manifesto central e que desde o eixo que-promete do Cristianismo, viu que a espera messiânica não se resolveria tão cedo, e pondo abaixo (essa forma tão leve que chega a beira do pseudo-centrismo em Deus Uno), sua soteriologia demandava pelas vicissitudes um cansaço da espera, e sobrou ao homem-centro tirar de si o Spleen e transformar por si o Paraíso em conquista do homem, que se torna medida de todas as coisas.

Charles Baudelaire era um pagão (de atitude, como poeta) com ressentimento de sua própria condição miserável, por isso se rejeitava a divagar magicamente na Flor do Mal e o diário de aforismas pessoais Meu Coração a Nu se serve de divagações que ousam somente no papel:

"Se é a unidade feita dualidade, então foi Deus quem caiu.

Ou, posto em outros termos, não será a criação a própria queda de Deus?"

A roupagem de poeta e principalmente de produto de sua época, em plena ascensão do processo capitalista de produção foi pressentida por ele, pela queda de antigas formas, e é curioso ver como ele mesmo sabe de algumas contradições próprias, já que o conflito com noções burguesas de seu tempo, o terror da alienação da vida moderna, e a aversão pelo futuro:

"Desde criança que sinto em mim dois impulsos contraditórios: um de horror e outro de exaltação pela Vida.

"O comércio é por natureza satânico.

"Da primeira à última linha todos os jornais não passam de um amontoado de horrores. Guerras, crimes, roubos, atentados ao pudor, torturas, crimes públicos, e crimes particulares — enfim, o delírio de uma crueldade universal.

E é com este repugnante aperitivo que o homem civilizado toma todos os dias seu café da manhã. Tudo neste mundo transpira a crime: o jornal, a muralha e a face do homem."

Eu prefiro sua sondagem do soneto Correspondências pra resumir um impulso que chegará profundamente aos Expressionistas na Alemanha:

IV - Correspondências

A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta como a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

O que se forma é uma tirania de si próprio para com os outros, a formação do pecador, que rejeita o mundo em busca de um sonho transcendente que não participa da realidade, não consegue afirmar a Vida e a Natureza se torna uma ofensa direta ao homem que então se artificializa pra crer-se ainda acima em alguma possibilidade de redenção rente ao que o mundo se expõe, sente-se na obrigação de exprimir a Natureza em desgosto. Enquanto que a Natureza não participar de uma conexão intrínseca com o Divino no qual Nietzsche e Vicente já propugnam como uma certa reconciliação do homem à Natureza e a si-próprio, reconhecer novamente seu papel como o intermediário mitológico de Deuses-Natureza-Mundo, ele sentirá a pressão do Fim como eterna luta contra si e necessidade de impor aos seus "iguais", uma obrigação de se ajoelhar aos fracos nos oníricos cenários de uma salvação em um futuro que sempre deverá chegar...

3

“O apocalipticismo entra em cena quando
o profetismo falha ou tarda a realizar-se.”
— Peter Sloterdijk

O movimento Expressionista desde seu início sempre demonstrou um caráter de transformação, revolta e renovação (J. Guinsburg, O Expressionismo - Histórico do Expressionismo); a primeira onda expressionista (o grupo Die Brücke) via na arte não somente a forma artística destituída de conteúdos pares a outros campos, era oposto a isto, era parte constituinte da totalidade, as áreas do conhecimento se perdiam fragmentariamente conforme se dissociavam uma das outras, reerguendo um particular princípio simbolista: visualizar, sentir o finito no infinito e vice-versa, através de mecanismos de sinestesia, de misticismo e até de explosão de percepções — ou como Rimbaud chamaria, Desregramento dos Sentidos — o mundo podia ser tanto um rompimento e o florescer do homem dionisíaco e avesso a formas convencionais e tradicionais (o autodidatismo se sobressaindo ao método das academias) ou tanto uma resolução da esfera estética como um novo florescimento da espiritualidade através da arte como creria o segundo grupo (Der Blaue Reiter) da primeira onda do movimento, que diferente do grupo anterior, implodiria então em uma exploração da forma organizada, uma pesquisa formal em que postularia uma nova gramática e penetrando assim o espírito interior do artista. No entanto diferente do Fim-de-Século do Simbolismo, os anos iniciais do século XX já se faziam sentir um cansaço e a angústia dominava a consciência, e o projeto industrial havia alastrado aos espíritos da época, ao mesmo tempo que o espírito científico anunciava novos ventos, as condições de subsistência apertam ainda mais a situação da cidade metropolitana, os poetas rente a isso cantam:

 

Em seu Bairro, na imundície das vielas,
Onde grande a lua entre vapores avança,
E no céu pesado cadente pende,
Crânio incomensurável, branco e morto,

Estão eles na cálida noite estival
Sentados diante do negro inferno de seus covis,
Em trapos que, decompostos pela poeira,
Revelam corpos intumescidos.

Aqui escancara-se desdentada uma bocarra.
Ali erguem-se de dois braços os negros tocos.
Um louco balbucia surdamente os cânticos sem nexo,
Onde queda imóvel um velho, no crânio a sarna branquejando.

Brincam crianças a quem cedo quebraram
Os delicados membros. Saltitam como pulgas em
Suas muletas e mancam encantadas atrás
De um centavo jogado por um estranho.

Georg Heym, Subúrbio (1910).

 

"A melhor prova de que o chamado expressionismo era um cadinho em que ferviam os mais diversos metais foi o facto de, depois do teste de conscientização constituido pela grande guerra[...], a --superação-- do expressionismo ter levado às mais diversas opções: da persistência num estilo messiânico e utopista à viragem para um --neorealismo-- ou para a acção política concreta [...], da adesão ao dadaismo/surrealismo à via conservadora e reformista que havia de levar alguns (poucos) a receber de braços abertos, ou pelo menos sem reacção, o partido de Hitler nos finais dos anos vinte; enfim, e exemplarmente no --caso Becher-- ao --caso Benn--[...]."

João Barrento — Expressionismo Alemão - Antologia Poética, Introdução

Há uma atmosfera crescente de desespero e a decadência se insinua plenamente, empobrece, torna o homem escravo de si, enquanto os horizontes cantam louvores do avanço científico, que paralelo a isso, também vem demonstrar durante alguns autores o prenúncio da guerra e alguns artistas advogaram por um renascimento espiritual através dessa experiência, muitos decepcionaram-se vendo que a "humanidade não se regenerara" e por mais angústias e preconceitos arraigados na Alemanha, essa crise civilizacional trouxe um último grande exemplo do eixo messiânico totalmente artificializado como se pode notar desde a criação e a ascensão de Hitler numa figura que filósofos e poetas e classes políticas compraram junto do ódio, a promessa de uma nova era do homem... e sobrou o que a história conta, citando Heym em 1911: "Nossa doença consiste em vivermos no fim de uma era, numa noite tão sufocante, que mal se podem suportar os eflúvios de sua podridão[...]" ( G.Heym, Eine Fratze, Die Aktion, n.18, Juni 19, 1911.) e citando o comentador K. Ludwig Schneider "as imagens bélicas de Heym não documentam o prazer desumano na destruição como tal, e sim o desejo de ver destruída uma estrutura que falhou." (K. L.Schneider, Georg Heymns Gedicht Der Krieg und die Marokko-Krise von 1911").

E como para encetar o fim de citações — deixo Vicente novamente finalizar esse artigo:

A técnica, como último elo da concepção cristã do mundo e do desejo de "Selbsterlôsung” (Salvação de Si), do homem, constitui por outro lado o aprofundar-se da noite. Heidegger precisou muito bem esse sentido de despedida do divino inerente ao prosseguimento do destino ocidental. A técnica, sentido culminante do nosso Éon, é ao mesmo tempo a organização da despedida e o nadir do divino.

Entretanto, como acenamos no início, algo já se pôs em movimento, muito acima do nosso espírito; uma nova relação com a alteridade, de forma ainda obscura e desarticulada, abre caminho através das névoas densas da crise. Os maiores gênios do nosso século, filósofos, poetas e artistas, pressentem a aproximação de um novo sentimento do divino."

V.F.S — D. das Consciências - Conclusão de Ideias para um Novo Conceito do Homem

 


O HERÁCLITO DE VICENTE

Por: Gustavo Cardoso

 

As versões do mesmo algo enquanto expressão de completude do mundo é a razão mesma daquilo que Vicente enxerga nos fragmentos de Heráclito; a constância posta em tema aquífero coordena tudo o que Heráclito evoca: nada continua o mesmo no mundo: nem o homem, nem o rio. Não se tratando, assim, de um ser, nem de um tornar-se, mas sim de um esvair-se, deixar de ser. Não um de-vir, mas um deir. “Se intentarmos isolar com as pinças de nossa mente uma coisa singular da caudal de vida onde se insere, ela logo se desvanecerá sob os nossos olhos; pois segundo uma sentença que se tornou legendária na história da filosofia ‘tudo flui’”. Abarcar a coisa sem almejar um total, sem ir em direção ao Uno, se mostra impossível. O deir da coisa se trata do desaparecimento de qualquer resquício de aparente exceção da coisa, a excepcionalidade da coisa própria esvai-se, desvai-se no total enquanto exceção mesma. A partir do normativo do mundano o Uno mostra-se como excepcional, e a partir da totalidade a existência mundana se expressa enquanto exceção que parte da totalidade unitária. Da mesma forma que, em esquemas cladísticos de classificação de espécies, ao nos aproximarmos mais do ‘ancestral em comum’, perdemos o referencial de diferenciação entre estas, pelas mesmas assemelharem-se progressivamente nessa remontagem regressiva na história, ao nos encaminharmos ao Uno acabamos por perder os diferenciais entre categoriais menores enquadrados a ação da pessoa reduzida a sua própria existência. Assim, a categoria do re-corte mostra-se indigna de viação ética, pois trata-se de ilusão. A eticidade mesma jaz na pureza das palavras vazias de prefixos e sufixos, sendo elas puras expressões. Nesta contenda, podemos observar o papel mesmo duma verdadeira filosofia: uma filosofia da ação fática, entregue por completo ao numinoso e que, por isso, a partir dele opera, sendo seu crivo. Não uma filosofia do recorte, mas do corte.

 

Ao pensarmos os atos puros enquanto linhas traçadas num plano, obtemos alguns exemplos de formas de se gerar recortes. Curiosamente, a única maneira de se produzir um re-corte(como uma extratigrafia, um apartar de porções) que não necessite de mais de uma linha é utilizando de uma linha curva produzindo um círculo. No círculo, ouroboros em forma, observamos algo essencial: para que se feche o espaço, para que se gere o extrato apartado, o tomo, é necessário a linha encontrar a si mesma, realizando o fechamento. Abstraímos, assim, um aforismo simples, porém essencial: todo re-corte produz uma relação que auto-inflige: todo apartar da realidade é um encontro conosco: ao recortarmos o mundo, cortamos-nos.

 

Tendo por exemplo o ato de culto - este que, progredindo em direção ao uno, perde-se na classificação moral, por essa nascer de uma falta da iluminação divina -, observamos que a existência da inconsistência axiológica da ação diária só existe pela falta de apontamento de uma totalidade superior, a duplicidade, a falsidade do ato surge, apenas, na escuridão da luz que emana da totalidade.

 

A compreensão da totalidade não somente encaminha o ato, mas sim o dissolve no momento em que o embarca. O embarcar mesmo, enquanto palavra aqui usada, possui um sentido - críptico, subterrâneo, cujos escritores tendem a fugir na contemporaneidade -  de “barcoar em”, num barco, navio, nave: embarcação. O medo jazido no uso poético de ‘embarcar’ num texto filosófico é um anseio daqueles iniciáticos em filosofia que, sem possuir seu lugar fixo, temem não emplacar por “falta de rigor científico”, quando, na verdade, abandonam o visionarismo próprio dos primórdios. A morte que em todos nós existe verte em imortalidade dada nossa milenar história que a todos nós transcende. Saindo de todos nós e a todos nós voltando através do momento, nos emboca como faces de moeda jogadas ao ar, sendo a especulação metafísica como uma geometria, geografia, topologia, desse enigmático item. Na infinitude efetuam-se recortes finitos. Re-cortes, sublimações a partir de um corte originário que, em seu modelo propriamente dramático, fada aos posteriores uma mísera mimese; porém, como aprendido, a mimética do recorte é aparente, pois este é necessariamente vazio e, com o progresso epistemológico sendo adquirido quando a acepção de todas as reações enquanto ações, de todos os simulacros enquanto uma única atualidade, absorvemos-nos na totalidade mesma. Engolimos-nos nesse estágio altero do cosmos, onde não vemos mais uma partilha isolada, mas conexões compartilhadas entre uma totalidade que pulsa. A filosofia de Heráclito advoga por um novo posicionamento quanto à ecologia, “sociologia” da realidade, diz Vicente: “Isoladamente nada existe: existir é coexistir”. Não se tratando, assim, duma passagem da sujeição do originário ao mimético, do homem ao fantasma, mas sim da relação entre igualmente essentes enquanto constituintes. Prefixos como re- são aqui destituídos, e os prefixos co- e con- tomam lugar nessa nova gama de elaborações. 

 

A imortalidade que jaz na mortalidade, que verte enquanto fixação na temática de uma métrica, na imensidão de uma unidade; assim como a mortalidade latente na imortalidade, enquanto uma finitude nascida numa vontade de expressão, num corte que, necessariamente, parte de uma relação consigo do inefável, onde o ir adentro e o ir afora igualam-se num único movimento - até por seu caráter auroral, fundando na sequencialidade, e a própria sequencialidade, as relações entre pólos -, arriscando provê-los ditame: sendo esta a forma primordial do ato artístico: a transcendentalidade imanente, ou, o originário. Tais esguios conceitos compõem as cores do quadro heraclítiano. Esse significado enterrado, cripta primeira que, em seu movimento intransponível, impede a captura e o recorte, expressa a vida enquanto devendo ser necessariamente oculta, obrigando-nos, assim, à iniciação de seus mistérios.


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