[V.A. Conto-Tradução] Lord Dunsany – Porque o Leiteiro Estremece Quando Percebe A Chegada do Amanhecer (1916)



No Salão da Antiga Companhia de Leiteiros, em volta da grande lareira situada no fundo, enquanto as lenhas do inverno queimam e os veículos estão guardados, eles contam hoje, como seus avós contaram antes deles, por que o leiteiro estremece quando percebe a chegada do amanhecer.

Quando o amanhecer espreita sobre os topos das colinas, perscruta por entre os troncos das árvores criando sombras maravilhosas, toca as extremidades das colunas de fumaça que sobem de cabanas que despertam nos vales e desponta num fulgor dourado sobre os campos de Kent, quando, vindo de lá, chega lentamente aos muros de Londres e embrenha-se timidamente naquelas ruas sombrias, o leiteiro o percebe e estremece.

Um homem pode ser um Aprendiz Ativo de Leiteiro, pode saber o que é bórax e como misturá-lo, mas não é por isso que a história lhe é contada. Há somente cinco homens que contam essa história, cinco homens designados pelo Mestre da Companhia, que se encarrega de preencher cada cargo à medida que se torna vago, e se não for por um deles, não se ouve a história por ninguém e assim jamais poderá ficar sabendo por que o leiteiro estremece quando percebe a chegada do amanhecer.

E o costume de um desses cinco homens, de barbas grisalhas, leiteiros desde a infância, esfregar as mãos perto do fogo enquanto as grandes toras de lenha queimam e acomodar-se em sua cadeira, talvez para bebericar alguma bebida que não seja leite, então olhar em volta para certificar-se de que não há entre os presentes alguém a quem não seria adequado contar a história, olhando cada um dos rostos e vendo somente os homens da Antiga Companhia, indagan do silenciosamente com os olhos os outros quatro, caso algum deles esteja lá e, recebendo a permissão desses, tossir e contar a historia. Um grande silêncio cai sobre o Salão da Antiga Companhia, algo acerca da forma do teto e das vigas faz com que a história seja levada até o outro lado do salão, de maneira que o mais jovem pode ouvi-la mesmo longe do fogo e toma conhecimento dela, e sonha com o dia em que talvez seja ele a contar por que o leiteiro estremece quando percebe a chegada do amanhecer.

A história não é contada como se conta um fato casual, nem é comentada de boca em boca, pois é contada somente em volta daquela grande lareira e quando a ocasião, a quietude do lugar, o mérito do vinho e o proveito de tudo isso parecem justificá-la na opinião dos cinco homens responsáveis: então um deles a conta como eu disse, sem ser apresentado por algum mestre de cerimônias, mas como se a história saísse direto do calor do fogo, diante do qual suas mãos nodosas estariam; não era algo aprendido mecanicamente, mas algo contado de maneira diferente por cada contador, e diferente de acordo com seu estado de espírito, porém nenhum deles jamais ousou alterar os pontos principais - não há ninguém tão indigno na Companhia de Leiteiros. A Companhia dos Empoadores de Rostos sabia dessa história e a invejava, assim como a Valorosa Companhia dos Barbeiros de Queixo e a Companhia dos Suiceiros. Mas nenhuma delas ouviu a história no Salão dos Leiteiros, por cujas paredes nenhum rumor do segredo passa; e embora as outras tenham inventado suas próprias histórias, são escarnecidas pela Antiguidade. Essa história madura já possuía uma idade venerável quando os leiteiros ainda usavam chapéus de castor, sua origem ainda era misteriosa quando gabões brancos estavam em voga, e os homens se perguntavam, quando os Stuarts ainda estavam no trono (e somente a Antiga Companhia sabia a resposta), por que o leiteiro estremece quando percebe a chegada do amanhecer. Por inveja da reputação dessa história é que a Companhia dos Empoadores de Rostos inventou a história que também conta em determinadas noites, a de "Por que o cão late quando ouve os passos do padeiro"; e porque todos provavelmente conhecem essa história, a Companhia dos Empoadores de Rostos ousa considerá-la famosa. Ela, no entanto, carece de mistério e não é antiga, não é reforçada por alusões clássicas, não possui uma tradição secreta, é de conhecimento de todos que se importam com uma história casual e compartilha com "As Guerras dos Elfos", o conto do Açougueiro e "A História do Unicórnio e a Rosa", que é a história da Companhia dos Cocheiros, sua óbvia inferioridade.

Porém, ao contrário de todas essas histórias tão novas e de tantas outras surgidas nos últimos dois séculos, a história que os leiteiros contam é sabiamente passada adiante aos sussurros, tão cheia de citações dos escritores mais profundos, tão cheia de alusões ocultas, tão profundamente marcada por toda a sabedoria dos homens e instrutiva pelas experiências de todas as épocas, que aqueles que a escutam no Salão dos Leiteiros, enquanto interpretam alusão após alusão e localizam citações obscuras, perdem a curiosidade e se esquecem de perguntar por que o leiteiro estremece quando percebe a chegada do amanhecer.

Você também, leitor, não se renda à curiosidade. Pense em como ela é a perdição de muitos. Você, para satisfazê-la, acabaria com o mistério do Salão dos Leiteiros e prejudicaria a Antiga Companhia de Leiteiros? Se o mundo inteiro a conhecesse e ela se tornasse algo banal, eles contariam essa história mais do que já a contaram nos últimos quatrocentos anos? Pelo contrário, um silêncio se abateria sobre o salão, tal como um pesar universal pela antiga história e pelas antigas noites de inverno. E embora a curiosidade pudesse ser considerada apropriada, ainda assim este não é o lugar apropriado, nem a ocasião apropriada, para a História. Pois o lugar apropriado é apenas o Salão dos Leiteiros, e a ocasião apropriada apenas quando a lenha queima bem e quando o vinho é bebido profusamente. Então, quando as velas estivessem ardendo nas longas fileiras à meia-luz, até a escuridão e o mistério que repousam no fundo do salão, e você fizesse parte da Companhia e eu fosse um dos cinco, então eu levantaria do meu lugar junto à lareira e lhe contaria, com todos os ornamentos acumulados com o passar das eras, aquela história que é a herança dos leiteiros. E as velas derreteriam, ficando cada vez menores, até se liquefazerem em seus suportes; correntes de ar soprariam cada vez mais fortes da extremidade escurecida do salão, até que as sombras viriam no encalço delas, e eu ainda teria sua atenção com aquela estimada história, não por causa de qualquer habilidade de minha parte, mas simplesmente devido ao fascínio e às épocas de onde ela veio. Uma a uma as velas tremeluziriam e apagariam e, quando tudo estivesse acabado, à luz das centelhas ominosas, quando o rosto de cada leiteiro encarasse temeroso seu companheiro, você saberia, como agora não pode sabê-lo, por que o leiteiro estremece quando percebe a chegada do amanhecer.


Conto retirado da edição "Contos Maravilhosos" (editora Arte & Letra)

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