[A.P. Artigo] Reconquista Metafórica
As fábulas sempre me
deixaram intrigado. O fizeram pois em seus significados sempre pareceu que
houvesse algo múltiplo, mesmo que talvez isso não me passasse muito pela cabeça.
Digo múltiplo no sentido de que a consciência parece abrigar espaço para
concepções como a de animais falantes, mas isso não nenhum absurdo quando a
própria consciência religiosa abriga espaço para deuses zoomórficos. No ensino
fundamental a interação dos alunos com a fábula sempre era uma devoção
particular, e quando a professora perguntava o significado do enredo sempre
surgia alguma explanação que tivesse aspectos diversos de uma anterior ou de
uma próxima explanação. Não sendo algo atomístico ou submetido à subjetividade
egóica, a explicação de uma criança sempre é única, pois a criança não tem
ainda uma ideia de heterogeneidade abundante, sempre está mais ligada ao seu mundo
fundante (daí que se diz que as crianças são, geralmente, mais inocentes).
A professora, em certo sentido, é encarregada de abrir esse fundo subjetivo —
ao menos naquele momento em que está lecionando — e esticar o perímetro da
circulação de ideias agora informadas, criando uma ponte inter-infantil e
intersubjetiva. É justamente essa ponte que indica que o subjetivo não é um
“ego” no sentido do “ego sum” de Descartes, mas esse “eu” é sempre um Eu
subjulgado por uma consciência universal (e aqui não quero aludir ainda para a
ideia de Deus com “D” maiúsculo, o único deus que se pode falar na questão do
Eu é um Seth esquartejado). De qualquer modo, a tentativa do mestre de univocar
o significado fabuloso sempre aponta para que as crianças que ali foram
atravessadas pela estória sempre estão presas a algo de indeterminado lhes
prendendo, do qual precisam de sinais de expressão para localizar melhor uma
espécie de fascínio anterior a qualquer determinação exterior (linguística). Ao
contrário do que se pensa, a fábula não é determinada no final da história por
ter seu desfecho entregue, mas é justamente esse des-fecho que dá espaço para a
indeterminação imagética das grandes estórias. A diversão das crianças e suas
inclinações às fábulas demonstram também um caráter originário da consciência
humana: το μύθος, o mito e seus símbolos.
Um camarada acabou de escrever sobre certos aspectos da metáfora, vejo importância em também guiar o tema. Aqui inauguro uma "rachadura" para que se possa contemplar um pouco dessa chuva que vem gotejando em minha nuca. Por esta brecha, quero aproveitar o seguinte trecho:
"Há a metáfora como processo de aconchego da especificidade do outro como ampliação/alteração do significado próprio. A metáfora é o movimento lá-cá, cá-lá, numa generalidade uma abertura do ser para que assim o corte seja feito, o sangue escorra, a troca seja efetuada".¹
Vale
ressaltar o seguinte: metáfora culmina sempre numa destruição da relação
analógica para concentração em somente um dos termos. Por isso é pedagógica.
Por isso é lógica. Urge, então, que a metáfora não é predicado do mito em si,
mas o mito é transfigurado em metáfora na pedagogia filosófica. Contudo, as
idas e vindas do mítico ao filosófico configuram um processo dialético de
reconstrução contínua. Ademais, a concentração do sentido mitológico
não-metafórico se da pela sua universalidade fundante absoluta e pela sua
polissemia simbólica. Isso parece também abrir um espaço duplo pra metáfora: o
mítico e o filosófico (analogia de proporcionalidade extrínseca). Pois enquanto
no segundo é figura de razão, existindo somente segundo a intenção (quando
comparo o instinto do leão com a coragem do homem), a primeira é sempre uma
doação de ser da Fonte aos seus oferecidos que de constituem nesse doar
primordial. Pode-se pensar na metáfora lógica como extensão daquela metáfora
natural da qual os caipiras e primitivos estão mais habituados. A μεταφορά (meta-transferência)
tem seu sentido pré-científico no doar mítico que desvela as essências
cósmicas. Olavo de Carvalho descreve perfeitamente este processo de doação e
reintegração de posse que ocorre: "enxofre que cristaliza o mercúrio, a
mente volátil, para produzir o sal – a alma perfeita".
Em
suma, a metáfora não mostra-em-vista da sua desintegração na razão daquilo que
se pretende mirar. Não é relação de um "logos analogante" para
elucidar pedagogicamente. Mas, sobretudo, a metáfora, enquanto medium,
quer revelar uma doação. E como toda doação é doada, revela um doador. Sua
lente foca nessa doação e aponta para este doador, e o faz patologicamente – se
mantendo desde que nos envolvamos pelo metafórico. Como em “metafísica”, o meta
de metafóra quer dizer uma “devolução ao sentido primário de”. Retrocedendo a partir das predicações
analógicas — do qual se apropriaram da metafóra como λογός, ou ratio —,
através das fábulas e atingindo o μύθο conseguimos meditar com êxito
nesta cifra metafórica originária, que quer antes conservar o “significado” do
mito. Os cristãos tiveram que apelar para a questão da analogia (parte igual e
parte diferente) para solucionar a lacuna que surge com a participação dos
seres em Deus, o Ser Supremo, e evitassem cair em um não-dualismo panenteísta.
Assim, a metáfora não é “doação” no sentido do metafórico trivial e podemos
fugir um pouco da propaganda escolástica. A razão parece pender para o que
Giles Deleuze defende em “Sur le cinéma:l’image-pensée”:
“Se você fala, no sentido mais geral de falar, ou seja, se você mostra imagens, se você fala ou se mostra, você falará e mostrará "literalmente" ou não mostrará nada. Será literal ou não será nada”.
Se
os Deuses e poetas falassem meramente por analogia, e se tais símbolos não
tivessem uma essência própria, então eles falariam arbitrariamente. Neste
sentido, quando uma fábula ou um mito quer significar algo há a sinalização de uma
imagem mais subsistente por si mesma. Como o pensamento mítico é anterior ao
desvelamento. E, ademais, como esse “mundo simbólico” fundamenta o mundo ele o
faz com literalidade, com uma literalidade expansiva, não com a literalidade
fática de um cristão que, por exemplo, lê o Apocalipse de São João com aquelas
correntes pedantes de uma exegese abandonada até pela Igreja Católica milênios
atrás. É na literalidade que pode se ajustar a polissemia, pois a polissemia
pode ter seu "muitos" tomada como o "muitos" de politeísmo,
isto é, um devir constante subsidiado por um clarão contínuo de fascínio. Quero
dizer, se não há algo de substância nas visões de Hesíodo em sua Teogonia,
então aqui ali não passa de palha. Hesíodo relata os mitologemas da Teogonia
como se os tivessem visto presencialmente. É como se Crono tivesse devorado os
seus filhos na frente de Hesíodo.
Talvez
isso explicasse um pouco sobre a afirmação de Platão no Fedro (265b) sobre a
espécie de louco (maníke) que também é um oráculo (mantiké)
inspirado pelas Musas. As Musas são deidades que presidem a Música. Campos
Haroldo denomina como “logopéia” a “musica do intelecto, coreografia das ondas
cerebrais harmonizadas cineticamente em movimento de palavras”². Claro, a “logopéia” não deve terminar aí,
em meras “ondas cerebrais”, mas é justamente a harmonização das palavras que
faz com que a linguagem possa ser exercida primeiro como “inspirada” e depois
como “fundante”. Os pitagóricos concebiam o Três, a Harmonia, como o Mundo. É a
partir desse ritmo entre contrários que as coisas podem aparecer. Pitágoras,
segundo anedota de Proclo, teria dito que como mais importante, depois do
“número” vem a “palavra”, o “nome”. Continua Haroldo, “basta ter ouvidos livres
para ouvir ‘estruturas’ (e estrelas)”, sendo as estrelas as palavras, todo som
é musical.
Que
fique claro, o significado primaz da metáfora não é de explicação. Não quer a
metáfora retroceder e esgotar o símbolo, o desintegrando no final. Mas ela
surge numa doação do mythos ao logos, que se perde na jornada.
Isso acontece pois, se o homem por sua vez não pode instaurar nenhum mito por
conta própria, então em algum nível de sua atividade criadora volta-se para a
filosofia. E na filosofia a metáfora aparece como essa doação. Metáfora é
transferência, meta-transferência, transferência primordial e essencial –
doação. Então, para operar com o mito, o homem tem que operar filosoficamente.
E só nisso ele pode ser senhor de algo, somente assim a fórmula de "animal
racional" (zôon logon), animal em que impera o discurso, a razão,
ou melhor, "aquele que pode manipular a linguagem em seus vários
níveis", pode ser real.
2 CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas, Poesia e Música.
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