[V.A. Conto-Tradução] Clark Ashton Smith — A História de Satampra Zeiros (1931)

 

EU, SATAMPRA ZEIROS de Uzuldaroum, devo escrever com minha mão esquerda, já que não tenho mais a outra, a história de tudo que recaiu sobre Tirouv Ompallios e mim mesmo no altar do deus Tsathoggua, que aguarda negligenciado pelo culto do homem nas florestas tomadas dos subúrbios de Commorion, essa longa e deserta capital dos Senhores Hiperbóreos. Eu devo escrever com o suco violeta de uma palmeira suvana, que transforma-se em rubrica de vermelho-sangue com o passar dos anos, sobre um forte velino feito da pele de um mastodonte como um aviso para todo bom trapaceiro e aventureiros que talvez ouça de alguma lenda local de tesouros perdidos de Commorion e esteja tentado a ver.

Agora Tirouv Ompallios era meu amigo de longa data e fiel companheiro em todas as empreitadas como necessidade de dedos hábeis e um pensar rápido e  astuto. Posso dizer sem adular por mim, ou Tirouv Ompallios também, que trazíamos um sucesso incomparável em que mais de um empreendimento do qual colegas artesãos de muito maior renome do que nós poderiam muito bem ter recuado em desânimo. Para ser mais explícito, refiro-me ao ao roubo das Joias da Rainha Cunambria, que eram mantidos em uma sala com dois andares de répteis venenosos vangando a vontade; e a invasão da caixa adamantina de Acromi, em que estavam todos os medalhões da antiga dinastia de reis Hiperbóreos. É verdade que esses medalhões eram dificultosos e perigosos de se desfazer, e que vendemos com muito sacrifício para o capitão de uma embarcação bárbara da remota Lemuria: mas  contudo, a invasão a caixa foi um feito glorioso, pois tinha de ser feito no absoluto silêncio, levando em conta  a proximidade de dúzias de guardas que estavam armados todos com tridentes. Fizemos uso de um raro e mordente... mas não devo me alongar muito e garatujar tanto a propósito, entretanto grande é a tentação divagar em meio a memórias heroicas e o alto glamour de valiosos ou habilidosos feitos.

 Em nossa vocação como em todas as outras, as vicissitudes da fortuna as vezes são reconhecidas; e a Deusa Chance nem sempre é pródiga em seus favores. Então era o que Tirouv Ompallios e eu, no momento que escrevo, nos encontramos na condição de depleção pecuniária, em que, temporariamente, nada menos era que extrema, e era bem inconveniente e entediante, vindo como veio na esteira de dias prósperos de meias-noites lucrativas. Os povos  começaram a ficar amaldiçoadamente mais cautelosos de suas bijuterias e outras preciosidades vidraças e portas agora duplamente barradas, novas e perplexas fechaduras estavam em uso, guardas ficaram mais vigilantes ou menos sonolentos, — em resumo, todas as dificuldades naturais de nosso trabalho tinham-se multiplicado por si. Em uma vez fomos reduzidos a roubar mercadorias mais gordas e menos valiosas como de costume lidamos; e mesmo isso foi difícil. Mesmo agora, e humilhante me relembrar a noite em que fomos quase pegos com um saco de inhames vermelhos; e digo disso tudo para que eu não seja visto como um vanglorioso qualquer.

Uma tarde, em um beco da mais humilde quadra de Uzuldaroum, paramos de contar os recursos disponíveis nossos, e descobrimos que entre nós havia três moedas exatas — suficiente para comprar uma grande garrafa de vinho romã ou dois pães. Debatemos o problema de despesa.

“O pão,” argumentou Tirouv Ompallios “irá alimentar nossos corpos, vai levar a um novo e mais expeditório esforço para gastar nossos membros e gastar nossas unhas desgastadas.”

“O vinho romã,” eu disse, “vai engrandecer nossos pensamentos, irá inspirar e iluminar nossas mentes, e por acaso revelará a nós um modo de escapar de nossos sofrimentos atuais.”

Tirouv Ompallios cedeu sem argumentar devido a minha razão superior, e avistamos a porta de uma taverna adjacente. O vinho não era do melhor, a respeito do sabor, mas a quantidade e força eram tudo o que poderia ser desejado. Nos sentamos em uma taverna lotada, e bebemos à vontade, até o fogo do brilhante licor rubro tivesse se transferido aos nossos cérebros. A escuridão e dubiedade de nossos futuros caminhos se tornassem claros  como pela luz dos agriões rosados, e o duro aspecto do mundo fosse maravilhosamente amaciado. Estranho, aí veio a mim uma inspiração.

“Tirouv Ompallios,” disse, “há alguma razão do porquê eu e você, que são bravos homens e não-tementes sujeitos de medos e superstições da multidão, não deveríamos nos valer dos tesouros reais do Commoriom? Um dia de viagem desta cansativa cidade, uma agradável estadia no campo, uma tarde ou uma manhã de pesquisa arqueológica — e quem sabe o que devemos encontrar?”

“Você fala astuciosa e valorosamente, meu amigo,” retomou Tirouv Ompallios. "De fato, não há razão para não reabastecer nossas finanças esvaziadas à custa de alguns reis ou deuses mortos".

Agora Commoriom, como todo o mundo sabe, estava deserta centenas de anos atrás por causa da profecia da Branca Sibila de Polarion, que predisse uma não-descritível e abominável perdição para todos os mortais que ousarem adentrar seus arredores. Alguns dizem que a perdição era uma pestilência que terá vindo do norte pelos caminhos das tribos da selva; outros, que era uma forma de loucura; a qualquer passo, ninguém, nem rei ou sacerdote ou mercante ou trabalhador ou ladrão, permaneceu em Commoriom para acatar sua chegada, todavia todos partiram em uma única migração para saber a distância de um dia de jornada para a nova capital, Uzuldaroum. E estranhas histórias são contadas, de horrores e terrores não para serem enfrentadas ou sobrepujadas pelo homem, que assombram para sempre os santuários e mausoléus e palácios de Commoriom. E ainda permanecem, um lustro de mármore, uma magnificência de granito, E ainda se mantém, um brilho de mármore, uma magnificência de granito, toda uma multidão de pináculos e cúpulas e obeliscos que as poderosas árvores da selva ainda não ultrapassaram, em um fértil vale interior de Hiperbórea. E homens dizem que as criptas intactas habitam repletos e com tesouros de antigos monarcas de outrora; que as altas-tumbas retém gemas e tostões que foram soterrados com suas múmias; os santuários ainda têm retábulos dourados e mobiliados, os ídolos, suas pedras preciosas no ouvido, na boca e nas narinas e umbigo.

Creio que devíamos ter saído naquela mesma noite, se tivéssemos a coragem e a inspiração de um segundo fardo vinho romã. Como foi, decidimos começar logo de manhã: o fato de que não tínhamos dinheiro para nossas jornada foi um pequeno momento, pois, a menos que nossa destreza anterior tivesse falhado completamente conosco, poderíamos cobrar um pouco de tributo involuntário do povo ingênuo do interior do país. No meio-tempo, nós ajeitamos nossos aposentos, onde o senhor da terra nos encontrou com um árduo salutar e uma deselegante demanda por dinheiro. Mas a promessa de ouro do dia seguinte tinha nos armado contra todos esses aborrecimentos triviais, e nós acenamos com um desdém que parecia assombrar o companheiro, se não mesmo subjugá-lo.

Dormimos tarde, o sol tinha ascendido longe sobre a aclividade azul dos céus quando deixamos os portões de Uzuldaroum e tomamos a estrada do norte que leva ao Commoriom. Fizemos um bom café com alguns melões âmbar, e uma ave roubada que cozinhamos no bosque, e depois retomamos nosso caminho. Apesar de um cansaço que aumentou sobre nós no final do dia, nossa viagem foi prazerosa, e encontramos muito para nos divertir nas diversas paisagens pelas quais passamos, e em seu povo. Algumas dessas pessoas, tenho certeza, ainda devem se lembrar de nós com pesar, pois não negamos a nós mesmos nada que tentasse nossa fantasia ou nossos apetites. Era um país agradável, cheio de fazendas e pomares e rios correntes e verdejantes florestas floreadas. Finalmente, em algum momento no curso da tarde, chegamos a uma antiga via, longamente em desuso e vegetação tomando conta, que percorre da autoestrada e indo até a antiga selva para Commoriom.

Ninguém nos viu adentrar essa via, e adiante não encontramos ninguém. Ao primeiro passso, passamos de todo o gênero humano; e parecia que todo o silêncio da floresta envolta de nós permaneceu irrequieta por por pisadas mortais desde a partida do lendário rei e seu povo séculos antes. As árvores eram tão vastas quanto qualquer uma que vimos, elas eram entrelaçadas por infindáveis níveis labirínticos, a eterna trama de teias convulsionando trepadeiras quase tão antigas quanto si próprias. As flores eram muito grandes, suas pétalas tinham uma palidez letal ou uma escarlatina sanguinária; e seus perfumes eram extremamente doces ou fedorentos. As frutas em nosso caminho eram de grande tamanho, com cores roxas e alaranjadas e avermelhadas, mas de alguma forma não nos atrevemos a comê-las.

Os bosques cresciam espessamente e selvagens conforme avançamos, e a rua, mesmo pavimentada com placas de granito, estava cada vez mais tomada por árvores enraizadas em seus interstícios, as vezes forçando a rachadura separando-as. Mesmo o sol não estando em seu horizonte, as sombras eram atiradas sobre nós a partir de gigantescos ramos e troncos  tornaram-se muito densos, e movemo-nos em um crepúsculo verde-escuro cheio com odores opressores de exuberantes matas e de corrupção vegetativa. Não havia pássaros ou animais, tais os que pensamos encontrar em qualquer floresta majestosa, porém em raros intervalos, víboras ocultas  com chocalhos pálidos deslizando sob nossos pés para longe entre as folhas altas a beira da estrada, ou alguma mariposa enorme com cores barrocas e manchas malignas voando diante de nós e desaparecendo na escuridão da selva. No exterior já na meia-luz, enormes morcegos purpúreos com olhos como pequenos rubis surgiram em nossa aproximação a partir dos frutos venenosos em que se banqueteavam, e nos observavam com atenção maligna enquanto pairavam sem ruído no ar acima. E sentimo-nos, de alguma forma, que estávamos sendo observados por outras presenças invisíveis; e uma espécie de espanto caiu sobre nós, um medo vago da selva monstruosa; e não falamos mais em voz alta, ou com frequência, mas apenas em sussurros raros.

Entre outras coisas, nós procuramos obter no caminho uma grande garrafa encourada entupida de palma-espiritual. Alguns goles do licor ardente já serviu para aliviar de uma vez o tédio da nossa jornada; e pôs-nos em rápidos passos. Cada um de nós bebeu uma corrente de ar liberal, e logo a selva se tornou menos impressionante; e nos perguntamos por que tínhamos permitido que o silêncio e a escuridão, os morcegos vigilantes e a imensidão de penas, pesassem sobre nossos espíritos mesmo por um breve tempo; e acho que depois de uma segunda corrente de ar começamos a cantar.

Quando o crepúsculo chegou, e a Quando o crepúsculo chegou, e uma lua de cera brilhou alto nos céus depois que a estrela do dia oculta havia desaparecido, estávamos tão imbuídos do fervor da aventura que decidimos avançar e alcançar Commoriom naquela mesma noite. Ceiamos sobre a comida que tínhamos cobrado do povo do país, e a garrafa de couro passou entre nós várias vezes. Então, consideravelmente fortificados, e repletos de dureza e do valor de um empreendimento grandioso, retomamos nossa jornada.

De fato, não tínhamos muito mais a percorrer. Mesmo quando estávamos debatendo entre nós, com um ardor que nos fez esquecer de nosso longo caminho, que saque caro escolheríamos primeiro entre todos os tesouros míticos do Commoriom, vimos ao luar o brilho das cúpulas de mármore sobre as copas das árvores, e depois entre os ramos e os galhos os pálidos pilares de pórticos sombrios. Mais alguns passos, e pisamos em ruas pavimentadas que corriam transversalmente da estrada alta que estávamos seguindo, para os bosques altos e exuberantes de cada lado, onde as frondes das grandes palmeiras sobrepujavam os telhados das casas antigas.

Fizemos uma pausa, e novamente o silêncio de uma antiga desolação clamou nossos lábios. Pois as casas eram brancas e ainda como sepulcros, e as sombras profundas que havia ao redor e sobre elas eram frias e sinistras e misteriosas como a própria sombra da morte. Parecia que o sol não poderia ter brilhado por séculos neste lugar — que nada mais quente que os raios espectrais da lua cadavérica havia tocado o mármore e o granito desde aquela migração universal impulsionada pela profecia da Sibila Branca de Polarion.

“Queria que estivesse de dia,” murmurou Tirouv Ompallios. Seu tom baixo estavam estranhamente sibilantes, eram anormalmente audíveis no silêncio mortal.

“Tirouv Ompallios,” repliquei, “Confio que você não esteja ficando supersticioso. Eu deveria estar relutante em pensar que você está sucumbindo a gracinhas infantis das multidões. No entanto, vamos tomar outra bebida".

A garrafa de couro foi aliviada sensivelmente pela demanda que fizemos agora sobre seu conteúdo, e fomos maravilhosamente aplaudidos — tanto, de fato, que começamos imediatamente a explorar uma avenida à esquerda, que, apesar de ter sido colocada com uma direção matemática direta, desapareceu a uma não-grande distância entre as árvores frondosas. Aqui, um pouco à parte dos outros edifícios, numa espécie de praça que a selva ainda não havia usurpado totalmente, encontramos um pequeno templo de arquitetura antiga que dava a impressão de ser muito mais antigo até mesmo do que os edifícios adjacentes. Ele também se diferenciava destes em seu material, pois era construído de uma pedra basáltica escura fortemente incrustada com líquens que pareciam de uma antiguidade conjunta. Era quadrada na forma, e não tinha cúpulas nem pináculos, nenhuma fachada de pilares, e apenas algumas janelas estreitas no alto do chão. Tais templos são raros em Hiperbórea hoje em dia; mas nós o conhecíamos como um santuário de Tsathoggua, um dos deuses mais antigos, que não recebe mais nenhum culto dos homens, mas diante de cujos altares de cinzas, dizem as pessoas, os animais furtivos e ferozes da selva, o símio, a preguiça gigante e o tigre de dentes compridos, às vezes foram ouvidos a uivar ou lamentar suas orações inarticuladas.

O templo, como os outros edifícios, estava em um estado de quase perfeita preservação: os únicos sinais de decadência estavam no lintel esculpido da porta, que havia se desmoronado e se fragmentado em vários lugares. A porta em si, forjada de um bronze moreno todo esverdeado pelo tempo, estava ligeiramente afastada. Sabendo que deveria haver um ídolo com jóias dentro, para não mencionar os vários retábulos de metais valiosos, sentimos o impulso da tentação.

Supondo que poderia ser necessária força para abrir à força a porta coberta de verdigris, bebemos muito e depois nos aplicamos à tarefa. É claro, as dobradiças estavam enferrujadas; e somente por meio de fortes músculos é que a porta finalmente começou a se mover. À medida que renovávamos nossos esforços, ela balançava lentamente para dentro com uma grade horrível e triturada que se montava em um grito quase vocal, no qual parecia ouvir os tons de alguma entidade desumana. O interior negro do templo bocejou diante de nós, e a partir dele surgiu um odor de mofo de longa prisão combinado com uma fetidez estranha e desconhecida. A isto, porém, demos pouca atenção na excitação natural do momento.

Com minha habitual previsão, eu tinha me fornecido um pedaço de madeira resinosa no início do dia, pensando que poderia servir de tocha no caso de qualquer exploração noturna do Commoriom. Acendi esta tocha, adentramos no santuário.

O local era pavimentado com imensas bandeiras quinquangulares do mesmo material a partir do qual suas paredes foram construídas. Estava bastante descoberto, exceto pela imagem do deus entronizado na extremidade posterior, o altar de dois andares de metal obscenamente enfeitado antes da imagem, e uma grande e curiosa bacia de bronze apoiada em três pernas, que ocupava o meio do piso. Dando quase uma olhada nessa bacia, corremos para frente e eu empurrei minha tocha na face do ídolo.

Eu nunca tinha visto uma imagem de Tsathoggua antes, mas o reconheci sem dificuldade a partir das descrições que tinha ouvido. Ele era muito acocorado e de barriga lisa, sua cabeça era mais parecida com a de um sapo monstruoso do que com uma divindade, e seu corpo inteiro estava coberto por uma imitação de pelo curto, dando de alguma forma uma vaga sugestão tanto do morcego quanto da preguiça. Suas pálpebras adormecidas estavam meio baixas sobre seus olhos globulares; e a ponta de uma língua esquisita saía de sua boca gorda. Na verdade, ele não era um tipo de de deus agradável ou pessoal, e eu não me admirava com a cessação de sua adoração, que só poderia ter apelado para homens muito brutais e aborígenes a qualquer momento.

Tirouv Ompallios e eu começamos a jurar simultaneamente pelos nomes de deidades mais urbanas e civilizadas, quando vimos que nem mesmo a mais comum das jóias semipreciosas era visível em qualquer lugar, seja sobre ou dentro de qualquer característica ou membro desta imagem execrável. Com uma aparência além do paralelo, mesmo os olhos tinham sido esculpidos da mesma pedra monótona que o resto da coisa abominável, e a boca, nariz, orelhas e todos os outros orifícios estavam sem adornos. Só podíamos nos maravilhar com a avareza ou pobreza dos seres que haviam forjado esta bestialidade única.

Agora que nossas mentes não estavam mais encantadas com a esperança de riquezas imediatas, nos tornamos mais conscientes de nosso entorno em geral; e em particular notamos o incômodo desconhecido de que falei anteriormente, que agora tinha aumentado desconfortavelmente em força. Descobrimos que vinha da bacia de bronze, que passamos a examinar, embora sem qualquer ideia de que o exame seria proveitoso ou mesmo agradável.

A bacia, eu disse, era muito grande; de fato, não tinha menos de dois metros de diâmetro por três de profundidade, e sua borda era a altura do ombro de um homem alto do chão. As três pernas que a perfuravam eram curvas e maciças e terminavam em patas felinas exibindo suas garras. Quando nos aproximamos e espreitamos por cima da borda, vimos que a tigela estava cheia de uma espécie de substância viscosa e semilíquida, bastante opaca e de uma cor fuliginosa. Foi a partir disto que o odor caminhava — um odor que, embora insuperavelmente sujo, não era um odor de putrefação, mas se assemelhava mais ao cheiro de alguma criatura vil e impura dos pântanos. O odor estava quase além da resistência, e estávamos prestes a nos desviar quando percebemos uma leve ebulição da superfície, como se o líquido fuliginoso estivesse sendo agitado por dentro por algum animal submerso ou outra entidade. Esta ebulição aumentou rapidamente, o centro inchou como se fosse com a ação de alguma levedura poderosa, e observamos horrorizados, enquanto uma cabeça amorfa imunda com olhos baços e salientes surgiu gradualmente em um pescoço cada vez mais alongado, e nos encarou no rosto com malignidade primordial. Então, dois braços — se alguém pudesse chamá-los de braços - surgiram polegada a polegada, e vimos que a coisa não era, como tínhamos pensado, uma criatura imersa no líquido, mas que o líquido em si tinha colocado esse pescoço e cabeça horríveis, e agora estava formando esses braços condenáveis, que tateava em nossa direção com apêndices semelhantes a tentáculos em vez de garras ou mãos!

Um medo que nunca havíamos experimentado nem mesmo em sonhos, dos quais não tínhamos encontrado nenhuma pista em nossas excursões noturnas mais perigosas, nos privou da faculdade de falar, mas não de movimento. Recuamos alguns passos da tigela e, coincidentemente com nossos passos, o horrível pescoço e os braços continuaram a se alongar. Então, toda a massa do fluido escuro começou a subir, e muito mais rapidamente do que o suco de suvana que escorre da minha caneta, ele derramou-se sobre a borda da bacia como uma torrente de prata trêmula preta, tomando ao chegar ao chão uma forma serpentina ondulante que imediatamente desenvolveu mais de uma dúzia de pernas curtas.

Que horror inimaginável da vida protoplástica, que odiosa desova da lama primordial tinha surgido para nos confrontar, nós não paramos para considerar ou conjecturar. A monstruosidade foi horrível demais para permitir até mesmo uma breve contemplação; além disso, suas intenções eram claramente hostis em excesso, e deu provas de inclinações antropofágicas; pois ela se esgueirava para nós com uma velocidade e celeridade de movimento inacreditáveis, abrindo-se como uma boca desdentada de capacidade surpreendente. Ao se abrir sobre nós, revelando uma língua que se desenrolava como uma longa serpente, suas mandíbulas se alargaram com ela extrema elasticidade que acompanhou todos os outros movimentos. Vimos que nossa saída do santuário de Tsathoggua havia se tornado mais imperativa, e virando nossas costas para todas as abominações daquele santuário não permitido, cruzamos o peitoril com um único salto, e corremos de cabeça no luar através dos subúrbios do Commoriom. Contornamos cada canto conveniente, dobramos nossos rastos atrás dos palácios dos nobres esquecidos pelo tempo e dos armazéns dos comerciantes sem registro, escolhemos preferencialmente os lugares onde as incessantes árvores da selva eram mais altas e grossas; e finalmente, em uma estrada onde as casas remotas não eram mais visíveis, fizemos uma pausa e nos atrevemos a olhar para trás.

Nossos pulmões estavam intoleravelmente tensos, estavam prontos para explodir com seu esforço heroico, e as várias fadigas do dia tinham nos anunciado com muita dor; mas quando vimos de calcanhar o monstro negro, seguindo-nos com uma facilidade serpentina e ondulante, como uma torrente que desce uma longa declividade, nossos membros vacilantes foram milagrosamente reanimados, e mergulhamos da luz traidora da estrada rua próxima na selva implacável, na esperança de fugir de nosso perseguidor no labirinto de troncos e videiras e folhas gigantescas. Tropeçamos em raízes e árvores caídas, rasgamos nossas vestes e laceramos nossas peles nos espinheiros selvagens, colidimos na escuridão com troncos enormes e mudas de madeira que se dobravam diante de nós, ouvimos o assobio de serpentes de árvores que cuspiram seu veneno em nós dos ramos acima, e o grunhido ou uivo de animais invisíveis quando os pisamos em nosso voo precipitado. Mas não nos atrevemos mais a parar ou olhar para trás.

Devemos ter continuado nossas peregrinações de forma precipitada por horas. A lua, que nos havia dado pouca luz na melhor das hipóteses através da pesada folhagem, caiu cada vez mais baixo entre as enormes palmas das palmeiras e as intrincadas trepadeiras. Mas seus raios finais, quando se afundou, foram tudo o que nos salvou de um pântano ruidoso com montes e sedimentos de grama que encobria os pântanos, em meio a cujos arredores perigosos e ao longo de cuja borda mefítica fomos obrigados a correr sem pausas ou hesitações ou tempo para escolher nosso caminho, com nosso maldito perseguidor perseguindo cada passo.

Agora, quando a lua desceu, nosso voo tornou-se mais selvagem e mais perigoso — um verdadeiro delírio de terror, exaustão, confusão e desesperada progressão difícil entre obstáculos aos quais não demos mais nenhuma atenção ou compreensão distinta, através de uma noite que se agarrava a nós e nos entupia como uma carga maligna, como os labores de uma teia monstruosa. Parece que a criatura atrás de nós, com suas inacreditáveis facilidades de movimento e auto-elongamento, poderia ter nos ultrapassado a qualquer momento; mas aparentemente ela desejava prolongar o jogo. E assim, em uma prolongação semi-eterna de horrores inconclusivos, a noite se prolongou... Mas nunca nos atrevemos a parar ou olhar para trás.

Longe e em declínio, um crepúsculo cintilante crescia entre as árvores — um prenúncio da manhã escondida. Mais desgastados que os mortos, e desejando qualquer descanso, qualquer segurança, mesmo a de algum túmulo indiscernível, corremos em direção à luz, e tropeçamos da selva em uma rua pavimentada entre prédios de mármore e granito. Dificilmente, embaixo do esmagamento de nossa fadiga, percebemos que havíamos vagado em círculo e voltado para os subúrbios do Commoriom. Diante de nós, não mais longe do que o arremesso de um dardo, estava o templo escuro de Tsathoggua.

Novamente nos aventuramos a olhar para trás, e vimos o monstro elástico, cujas pernas tinham agora alongado até que ele se elevou acima de nós, e cuja mandíbula era larga o suficiente para  ter-nos engolido em dois em uma boca cheia. Ele nos seguiu com um deslizar sem esforço, com uma certeza de movimento e intenção demasiado horrível, por demais cínico para ser suportado. Entramos correndo no templo de Tsathoggua, cuja porta ainda estava aberta assim que a deixamos, e fechando a porta atrás de nós com um imediatismo temível, conseguimos, com a força sobre-humana de nosso desespero, disparar um dos parafusos enferrujados.

Agora, enquanto o frio da madrugada caía em estreitos poços através das janelas no alto da parede, nós tentamos com uma resignação verdadeiramente heróica nos recompor, e esperávamos por tudo o que nosso destino deveria trazer. E enquanto esperávamos, o deus Tsathoggua nos espreitava com um agachamento e uma vileza e bestialidade ainda mais imbecil do que ele havia mostrado na luz da tocha.

Acho que já disse que o lintel da porta havia desmoronado e se fragmentado em vários lugares. De fato, o processo inicial da ruína havia feito três aberturas, através das quais a luz do dia agora filtrava, e que eram suficientemente grandes para permitir a passagem de pequenos animais ou serpentes de tamanho considerável. Por alguma razão, nossos olhos foram atraídos para estas aberturas.

Não havíamos olhado muito, quando a luz foi repentinamente interceptada nas três aberturas, e então um material negro começou a derramar através delas e correu pela porta em um fluxo triplo até as lajes, onde se reuniu novamente e retomou a forma da coisa que nos havia seguido.

"Adeus, Tirouv Ompallios," chorei, com o fôlego que me restava. Então corri e me escondi atrás da imagem de Tsathoggua, que era grande o suficiente para me proteger da vista, mas, infelizmente, era pequena demais para servir a este propósito para mais de uma pessoa. Tirouv Ompallios teria me precedido com a mesma ideia louvável de autopreservação, mas eu era o mais rápido. E como não havia espaço para nós dois na retaguarda de Tsathoggua, ele devolveu minha valentia e subiu na grande bacia de bronze, que sozinha agora podia se dar ao luxo de um momento de ocultação na nudez do santuário.

Observando por trás daquele deus execrável, cujo único mérito era a largura de seu abdômen e de suas assombrações, observei as ações do monstro. Logo que Tirouv Ompallios se agachou na tigela de três pernas, quando a enormidade sem nome se ergueu como um pilar fuliginoso e se aproximou da bacia. A cabeça tinha agora mudado de forma e posição, até que não era mais do que uma vaga impressão de características no meio de um corpo sem braços, pernas ou pescoço. A coisa se ergueu acima da borda por um instante, reunindo todo seu volume em uma massa iminente em uma espécie de cauda afunilada, e então, como uma onda cadente, caiu na tigela sobre Tirouv Ompallios. Seu corpo inteiro parecia abrir-se e formar uma boca imensa enquanto afundava de vista.

Dificilmente consegui respirar em meu horror, esperei, mas nenhum som e nenhum movimento veio da bacia — nem mesmo um gemido de Tirouv Ompallios. Finalmente, com infinita lentidão, trepidação e cautela, aventurei-me a sair de trás de Tsathoggua, e ao passar a bacia na ponta dos pés, consegui chegar até a porta.

Agora, para ganhar minha liberdade, seria necessário puxar o parafuso para trás e abrir a porta. E isto eu temia muito fazer por causa do inevitável barulho. Senti que seria altamente imprudente perturbar a entidade na tigela enquanto ela estava digerindo Tirouv Ompallios; mas parecia não haver outra maneira se alguma vez eu fosse deixar aquela abominável tolice.

Mesmo quando atirei o parafuso de volta, um único tentáculo saltou com velocidade infernal da bacia, e se alongando por toda a sala, ele pegou meu pulso direito em uma embreagem letal. Era diferente de tudo que eu já havia tocado, era indescritivelmente viscoso, gosmento e frio, era macio como o lodo de um pântano e afiado como um metal de aresta, com uma sucção agonizante e constrição que me fez gritar em voz alta enquanto a garra se apertava sobre minha carne, cortando em mim como um entorno de facas. Em minhas lutas para me libertar, abri a porta e caí para frente no peitoril. Um momento de dor terrível, e então tomei consciência de que tinha me afastado de meu captor. Mas, olhando para baixo, vi que minha mão havia desaparecido, deixando um cepo estranhamente murcho, do qual pouco sangue saía. Então, olhando atrás de mim para dentro do santuário, vi o tentáculo recuar e encurtar até passar de vista atrás da borda da bacia, carregando minha mão perdida para unir o que agora restava de Tirouv Ompallios.


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