[A.P. Artigo] Fascinação e Pseudo-imanência
Afirmações
mal elaboradas de que religião se resume à construção social, convenção
arbitrária, permeiam quase que involuntariamente toda discussão contemporânea
que envolva o fenômeno religioso. Uma partícula engraçada disto é que alguns de
seus repetidores também acreditam que a religião é alienadora, fruto de uma
classe dominante. Ora, como pode algo feito pelas conjecturas sociais, que necessita
evidentemente da ação individual para atuar, isso se não quiser se reduzir a
mera abstração injustificada, concomitantemente expulsar a consciência do
todo?!
Claro, há
também uma clara relação de falseamento nessa primeira tese apresentada
anteriormente. A religião é fruto de um espanto, de um fascínio. Isso é tanto
verdadeiro quanto a noção da origem da obra de arte no próprio fenômeno
numinoso das religiões. O humanismo reducionista não faz sentido aqui, como não
fez sentido em qualquer área que pudesse existir. Ver alguns pseudo-religiosos
caindo nestas superstições materialistas tira qualquer um do sério — mas não se
deve deixar o queixo cair e os nervos se atordoarem, essa confusão tem seu quê
de graça.
O homem
não se fascina por si mesmo mais do que se fascina pelo outro. O homem externo
e o homem interno são pouco demais pra fascinar sistemas tão íntegros — quero
dizer, não há só fascinação do homem pelo homem (Deuses zoomórficos evidenciam
isto). Pelo contrário, a natureza fascina o homem. A harmonia no canto dos
pássaros. As noções botânicas de ramos e fertilidade. Tudo que está no mundo o fascina,
portanto a fascinação é ainda anterior e exterior ao homem. O fascinar não é um
deixar-se que o homem comete, mas um verdadeiro espanto (pathós) que o homem
sofre. Assim como em Platão há a noção do surgimento da filosofia na alma como
espanto — que desde já o acompanha durante todo o filosofar — a religião surge
de um espanto um pouco diferente. Tão diferente quanto os fenômenos mitológicos
e filosóficos — de onde surge o filomítico e o filosófico.
Bem,
evidentemente esta visão participada pelos nossos detratores tem raiz na noção
de que a cultura e a história influenciam as conjecturas de nossa
interpretação. Mas, claro, é tão absurdo negar isso quanto argumentar contra a
noção do surgimento da cultura a partir da numinosidade divina. O erro,
repetindo o que já fora dito, começa a partir do momento em que se interpreta a
cultura em visões cíclicas: outrora o homem cria a cultura, outrora não pode
escapar das garras histórico-culturais.
Tem-se
então a noção de interpretação, que fundamenta a weltanschauung
(visão-de-mundo). O homem não foi deixado no mundo como dado. A própria
interpretação convoca a noção de anterioridade aproximada. Ora, não há
interpretação sem esboço. Quando uma criança interpreta uma pintura não o faz a
partir do que aprendeu da própria pintura, mas de sugestão anterior e opera a
partir disto para sua leitura. O homem opera somente através dessa sugestão
universal, por esse oferecimento, esse desvelamento oferecido que é a
mitologia.
A
interpretação contrária, de que o homem é dado no mundo e cria sua visão de
mundo a partir de forças inexistentes, nada esclarecidas, arbitrárias, é
originalmente endossada pelos cristãos. Só pode a cultura alienígena ser obra
da mente humana ou da alienação religiosa (que é alienação humana, feita por
forças demoníacas), claro. Qual cristão poderia olhar para o pagão bárbaro e
dizer que sua cultura também tem origem divina? Oswald de Andrade tem certa
razão em chamar os marxistas de sua época “patriarcais”, isto é, messiânicos,
antagonistas do matriarcado-devorador-antropofágico. “Quem mais precisa ser
salvo se não o proletariado iludido pelas promessas dos padres?! Quem mais
precisa ser salvo se não o pagão escorraçado pelos demônios?! Devemos”, diz o
cristão-progressista, “trazer a palavra de Cristo-Revolução para eles!”. De
forma parecida, os discursos progressistas se apoderam do bárbaro primitivo
(sobretudo os povos ameríndios) como figura paterna, sua cosmologia de
resquícios trágicos evidentemente é contrária à cosmologia indígena. De um lado
“Queremos o Estado ateu!” e de outro há uma weltanschauung teocrática e
teogônica.
A
interpretação é dada por um desvelar transcendental, por forças operantes do
Ser, Sugestor (deveria se presumir que aqui se faz uso de uma concepção
tremendamente vicentina). O nosso estar-no-mundo é reciproco ao estar-no-mundo
de diversos outros entes — entre eles, tanto racionais (p.ex., daemones)
como irracionais — , enquanto estar-no-mundo. Porém, estes entes passam a
existir quando ganham um nome. Ou seja, quando são pensados por nós e ganham
ali uma vaga. Nomen e numen. Descobrir o nome (nomen) de
algo é penetrar no mistério (numem) do seu ser. O nome, claro, é
desvelado. Entramos no campo da concepção heideggeriana de Linguagem, evitando
esta enquanto exercício, produto, humano. Ora, as sugestões que os entes nos
dão evidentemente falam. Ou melhor, os entes são falados através de sugestões.
“Linguagem é logos, Linguagem”. Ouvimos o Ser através da poesia. A poesia,
contudo, nasce na mitologia. Os termos que usamos hodiernamente (quando estão
caídos na conversação) tem origem mitológica e poética e se exprimem
verdadeiramente quando se fala poeticamente. A interpretação é feita sob a
conjectura metalinguística (proto-poesia, i.e., mitologia) de estruturas
linguístico-simbólicas.
Os nomes
dos Deuses apontam para Eles como Fontes, Oferecedores e, como inspiram seus
ofereceres, Fascinadores. Ao menos é isto que Platão parece querer demonstrar
quando, investigando os nomes dos Deuses, aponta para várias origens que os
tais possuem. Apolo, por exemplo, é apoloun, apolúon, aploun, aei ballon,
akólouthos, ákoitis, omopolôn, etc (405c-406b). A mitologia dá razão de ser
ao homem e à história, daí surgem os arquétipos temporais de cada era.
A
morfologia das eras demonstra um des-fecho do Ser. Repetindo o que Vicente
Ferreira da Silva fala quando endossa a interpretação schellinguiana do mito,
essa hierofânia é meta-histórica e ilimitada. Não pode o ser humano cria-la.
Ele está, também, à mercê das forças atuantes do mito, principalmente por não
ser o elaborador do mito. O ser humano, enquanto instituído, é limitado por
demasia. Contudo, tem ele um grau de elevação por poder praticar o mito, o rito
é mito transposto na experiência religiosa (daí as figuras paramitológicas). Deve
o Fascinator ser ilimitado, pois canta a poesia como fenômeno proto-típico, que
deve acompanhar as possibilidades da história. Ora, quando se conhece um ente
se pode nomeá-lo segundo o conhecimento que se tem — aí está a distância entre
significante-significado-referente. Portanto, os Deuses, uma vez que enquanto
Fontes oferecem o oferecido a partir de si, contemplam o próprio oferecimento
com mais dignidade — e sua poesia é puro encanto.
O Ser da
cultura, então, é instituído a partir do esboço primário que a mitologia
propaga enquanto codificação do próprio Ser. E é divina, uma vez que nasce em
um crepúsculo teogônico. Daí a “alma” que Spengler predica como substância da
cultura: “Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu
estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma
forma surgir em meio ao informe; quando algo limitado, transitório, origina-se
no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente
restrita, ao que se apaga, qual planta” (ver: A Decadência do Ocidente). A
revelação, logo então, nos entrega aspectos do mundo, sob os quais podemos
operar nossas interpretações. Se assegura que VFS estava cheio de razão ao
dizer: “Jamais encontraria qualquer fundamento filosófico a tentativa de
reduzir as formações mítico-religiosas e a pura instância do divino a
presumidas projeções de substratos psíquicos ou antropológicos, substratos
considerados independentes ou casualmente determinantes” (ver: A Origem
Religiosa da Cultura).
Finalmente,
podemos deixar Fernando Pessoa soar a raíz trágica da qual se fundam estes
acusadores que citamos no começo do ensaio e que combatemos durante o
tal:
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro
girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
(Realidade)
Comentários
Postar um comentário