[V.A. Conto-Tradução] Frank Belknap Long — Os Cães de Tíndalos (1929)
Frank Belknap Long
— 1 —
“Estou contente que tenha vindo” disse Chalmers. Ele estava sentado próximo a janela com a face bem pálida. Duas velas longas próximas ao seu ombro lançam uma fraca luz âmbar sobre seu longo nariz e seu queixo recuado. Chalmers não possuía nada moderno em seu apartamento. Ele tinha um espírito medievalesco, favorecendo manuscritos iluminados a automóveis, gárgulas de pedra invés de rádios e outras máquinas.
Enquanto eu atravessava a sala para o assento que ele ajeitou para mim, eu lancei olhares a escrivaninha e fui surpreendido ao notar que ele esteve estudando fórmulas matemáticas de um aclamado físico contemporâneo, e que ele tinha preparado várias folhas de papel amarelo fino com formas geométricas anômalas.
“Einstein e John Dee são estranhos companheiros de cabeceira,” eu relatei enquanto meu olhar vagueava de seus diagramas matemáticos para sessenta ou setenta livros singulares que compõem sua estranha e pequena biblioteca. Plotino e Emanuel Moscopulo, São Tomás de Aquino e Frénicle de Bessy estavam lado a lado na estante de ébano, cadeiras, mesa, e escrivaninha estavam cheias de panfletos sobre feitiçaria medieval, bruxaria e magia negra, tudo de mais insólito que o mundo moderno tem repudiado.
Chalmers realçou um sorriso, passando-me um cigarro russo em uma curiosa prateleira esculpida. “Nós estamos descobrindo somente agora,” disse ele, “o que os antigos alquimistas e feiticeiros estavam dois terços correto, e que sua moderna biologia materialista estão nove décimos errada.”
“Você sempre zombou da ciência moderna.” eu disse, um pouco impaciente.
“Apenas o dogmatismo científico,” ele replicou. “Eu sempre fui rebelde, um campeão de originalidade e causas perdidas; é por isso que decidi repudiar as conclusões dos biologistas contemporâneos.”
“E Einstein?” perguntei.
“Um sacerdote de matemáticas transcendentais!” ele murmurou reverente. “Um profundo místico e desbravador da grande suspeita.”
“Então você não nega completamente a ciência moderna.”
“Claro que não,” ele afirmou. “Meramente desacredito o positivismo científico dos passados cinquenta anos, o positivismo de Haeckel e Darwin e do Sr. Bertrand Russell. Creio que a biologia falhou miseravelmente em explicar o mistério da origem do homem e seu destino.”
“Dê-os tempo.” Retorqui.
Os olhos de Chalmers brilharam. “Meu amigo,” murmurou, “seu trocadilho é sublime. Dê-os tempo. Isso é exatamente o que eu faria. Mas a sua biologia moderna caçoa do tempo. Tendo a chave porém recusando seu uso. O que sabemos do tempo, de verdade? Einstein pensou que era relativo, interpretando-o em conceitos de espaço, de espaço curvado. Devemos parar por aqui? Quando a matemática não resolve paramos por aqui invés de avançar através da — introspecção?”
“Você está adentrando um terreno perigoso,” respondi. “Isso é uma queda que a sua verdadeira investigação evita. Por isso a moderna ciência caminha a passos lentos. Recusando tudo que não possa demonstrar. Mas você-” “Eu prefiro usar haxixe, opioides e todos os tipos de substâncias. Eu emularia a sabedoria do Leste. E então para que eu possa apreender — ”
“O que?”
“A quarta dimensão.”
“Bobagem teosófica!”
“Talvez. Mas creio eu que as substâncias possam expandir a consciência humana. William James concorda comigo. E eu descobri uma nova.”
“Uma nova droga?”
“Foi usada séculos antes pelos alquimistas Chineses, porém é realmente desconhecida no Ocidente. As propriedades ocultas são fascinantes. Com o auxílio dela e da minha expertise matemática creio ser possível eu voltar através do tempo.”
“Eu não compreendo.”
“Tempo é apenas a nossa percepção imperfeita de uma nova dimensão do espaço. Tempo e moção ambas são ilusões. Tudo tem sua existência desde o início do mundo como existe agora mesmo. Eventos que ocorreram séculos atrás nesse mundo continuam a existir em outra dimensão do espaço. Eventos que ocorrerão existem nesse momento. Não notamos sua existência por não conseguirmos adentrar a dimensão espacial que nela subsistem. Seres humanos como conhecemos são meras frações, pequenas frações infinitesimais de um enorme inteiro. Cada indivíduo está conectado com toda a vida precedente na Terra. Todos os seus ancestrais fazem parte de si. Unicamente o tempo o separa de seus antepassados, tempo é uma ilusão que não subsiste.”
“Acho que entendo,” murmurei.
“Será o suficiente pro meu propósito se conseguir formar uma vaga ideia do que quero alcançar. Eu quero desfazer o véu da ilusão que o tempo cobriu em meus olhos, e ver o início e o fim.”
“E você crê que essa droga irá ajudá-lo?”
“Tenho certeza de que funcionará. E quero que você me auxilie. Pretendo tomar a substância imediatamente. Não consigo esperar. Eu devo ver.” Seus olhos reluziram estranhamente. “Irei voltar, voltar no tempo.”
Ele se levantou e avançou até a lareira. Quando me encarou novamente ele estava segurando uma caixa quadrada pequena na palma da mão. “Aqui tenho cinco capsulas da substância de Liao. Foi usada pelo filósofo Chines Lao Tse, enquanto estava sobre sua influência ele visionou o Tao. Tao é a força mais misteriosa no mundo; percorrendo e pervadindo todas as coisas; contêm o universo visível e tudo que conhecemos como realidade. Aquele que compreende os mistérios do Tao vê claramente tudo o que foi e que será.”
“Bobeira!” respondi.
“Tao lembra um grande animal, repousando, imóvel, contendo em seu enorme corpo todos os astros do nosso universo, passado, presente e futuro. Vemos porções desse grande monstro através de uma fenda. Eu devo contemplar a grande forma da vida, a grande besta em sua totalidade.”
“E o que quer que eu faça?”
“Observe, amigo meu. Observe e faça anotações. E se eu voltar muito, você deve me convocar pra realidade. Você pode me chamar ao chacoalhar-me agressivamente. Se eu aparentar sofrer de dor física aguda, deve me chamar de uma vez.”
“Chalmers,” disse, “Não quero que você faça esse experimento. Você está tomando muitos riscos. Não creio que haja uma quarta dimensão e eu enfaticamente desacredito do Tao. Não aprovo seus testes com drogas desconhecidas.”
“Conheço as propriedades dessa substância,” ele replicou. “Sei exatamente como afeta o animal humano e seus defeitos. O risco não reside na substância em si. Meu único medo é me perder através do tempo. Vê, eu devo auxiliar a substância. Antes de ingerir acapsula devo eu dar-me atenção aos símbolos geométricos e algébricos que rabisquei nesse papel.” Ele levantou o diagrama matemático que estava no joelho. “irei preparar minha razão para uma excursão no tempo. Aproximar-me da quarta dimensão com minha consciência antes de ingerir a substância permitirá que eu pratique forças ocultas da percepção. Antes de adentrar o mundo onírico do Leste místico eu requisito toda ajuda matemática que a moderna ciência há de oferecer. Essas noções matemáticas, essa aproximação consciente para uma real apreensão da quarta dimensão temporal, irá suplementar o funcionamento da substância. A substância vai oferecer um panorama abismal — a preparação matemática possibilitará me engajar intelectualmente. Eu já me aventurei na quarta dimensão em sonhos, emocionalmente, intuitivamente, mas nunca fui capaz de relembrar, na vida desperta, o esplendor oculto que se revela momentaneamente a mim.
“Porém com sua ajuda, devo relembrar eles. Você marcará tudo que eu relatar sob a influência da substância. Não importando o quão bizarro ou incoerente meu discurso se torne você não omitirá nada. Quando eu despertar poderei fornecer a chave para qualquer mistério ou fantasia. Não tenho certeza se obterei sucesso, mas se eu tiver” — seus olhos estavam estranhamente iluminados — “o tempo não terá mais influência sobre em mim!”
Ele se sentou abruptamente. “Devo realizar o experimento de uma vez. Por favor permaneça próximo a janela e veja. Você tem uma caneta?”
Eu confirmei com a cabeça e retirei uma pálida caneta verde do bolso superior do colete.
“E um caderno, Frank?”
Murmurei e preparei um bloco de notas. “Enfatizo meu reprovamento do experimento,” avisei. “Você está tomando um risco desnecessário.”
“Não haja como um velho tolo!” retrucou. “Nada que diga me fará mudar de ideia agora.
Eu sugiro que permaneça quieto enquanto estudo essas folhas.”
Ele ergueu os papéis e começou a estudá-los atentamente. Eu notei o relógio na mesa enquanto tiquetaqueava os segundos, um pavor me tomou de súbito e quase me asfixiou.
De repente o relógio parou de tocar, no exato momento que Chalmers ingeriu a droga.
Me levantei rapidamente e fui até ele, mas seus olhos imploraram para não interferir. “O relógio parou,” ele murmurou. “As forças que o controlam aprovam minha experiência. O Tempo cessou, ingeri a substância. Rezo a Deus que eu não me perca no trajeto.”
Fechando os olhos e se aconchegando no sofá. Todo o sangue esvaziou da face enquanto respirava pesadamente. Era óbvio que a droga estava atuando extraordinariamente rápido.
“Está começando a escurecer,” murmurava. “anote isso. Está começando a escurecer e objetos familiares estavam começando a desvanecer. Consigo discernir vagamente através das pálpebras, porém estão desvanecendo rapidamente.”
Eu saquei minha caneta e balancei para a tinta sair, escrevi em taquigrafia enquanto ele ditava.
“Estou deixando a sala. As paredes estão sumindo e não vejo mais qualquer objeto familiar. Seu rosto, no entanto, continua visível para mim. Espero que esteja escrevendo. Acho que estou prestes a dar um grande salto através do espaço. Ou talvez seja o através do tempo que eu esteja prestes a saltar. Não consigo dizer. Tudo está escuro, indistinto.”
Ele permaneceu sentado em silêncio por um tempo, com a cabeça sobre o peito. Subitamente ele enrijeceu e suas pálpebras abriram. “Deus do céu!” ele berrou. “Eu vejo!”
Ele estava se ajeitando pra frente na cadeira, encarando a parede oposta. Mas sei que ele estava olhando além da parede e os objetos na sala não existem para ele. “Chalmers,” berrei, “Devo trazê-lo de volta?”
“Não!” ele gritou. “Vejo tudo. Todas as bilhões de vidas que me anteciparam nesse mundo estão perante mim nesse momento. Observo homens de todas as idades, raças, cores. Estão lutando, matando, construindo, dançando, cantando. Estão sentados envolta de fogueiras rústicas em desertos cinzas, voando através do ar em monoplanos. Estão navegando pelos mares em canoas de madeira e enormes navios a vapor; estão pintando bisões e mamutes nas paredes nefastas das cavernas e cobrindo enormes telas com desenhos futuristas estranhos. Eu vejo as migrações de Atlântida. Vejo migrações da Lemuria. Observo as antigas raças — uma estranha horda de anões negros invadindo a Asia, e os Neandertais com suas cabeças abaixadas e joelhos dobrados por toda a Europa. Eu vejo os Aqueus percorrendo as ilhas Gregas, e o cru início da cultura Helênica. Estou em Atenas enquanto Péricles é jovem. Estou no solo da Itália. Eu auxilio no Rapto da Sabinas; marcho com as Legiões Imperiais. Eu tremulo de contemplação enquanto passam os grandes estandartes e o chão treme com a vitória dos Hastados. Mil escravos nus arrastam-se diante de mim enquanto passo por uma pilha de ouro e marfim carregado por touros escuros como a noite em Tebas, e as garotas-floridas gritam em saudação ‘Ave César’ enquanto eu aceno e sorrio. Eu mesmo sou um escravo em uma Galé Sarracena. Eu vejo a edificação de uma grandiosa catedral. Pedra sob pedra se ergue, através dos meses e anos eu permaneço eu observo cada pedra cair do lugar. Sou queimado em uma cruz de cabeça pra baixo nos jardins perfumados de Nero, e vejo com diversão e desprezo os torturadores que trabalhavam nas câmaras da inquisição.
“Ando nos mais santificados santuários; adentro os templos de Vênus. Me ajoelho perante a Magna Mãe, e atiro moedas nos joelhos descalços das cortesãs sagradas que se sentam com rostos velados nos bosques da Babilônia. Me arrasto através da corte Elizabetana com a ralé fedelha envolta e aplaudo O Mercante de Veneza. Caminho com Dante pelas ruas estreitas de Florença. Conheço a jovem Beatriz, e a bainha de sua vestimenta roça minhas sandálias enquanto eu fico olhando extasiado. Sou um sacerdote de Isis, minha magia impressiona nações. Simão Mago se ajoelha perante mim, implorando por ajuda, e o Faraó treme quando me aproximo. Na Índia converso com os Mestres e corro gritando de sua presença, por tais revelações que são como sal em uma ferida que sangra.
“Percebo tudo simultaneamente. Eu percebo tudo de todos os lados; faço parte de todas essas bilhões de pessoas que me cercam. Subsisto em todos os homens e todos eles em mim. Distingo toda a história humana em um instante, passado e presente.
“Por um simples esforço, consigo ver cada vez mais antes. Agora estou indo adiante em estranhas curvas e ângulos. Ângulos e curvas multiplicam-se envolta de mim. Noto grandes segmentos do tempo através das curvas. Há o tempo curvado, e o tempo angular. Os seres que habitam o tempo angular não conseguem adentrar o tempo curvado. É bem esquisito.
“Estou voltando e voltando. O homem desapareceu da Terra. Répteis enormes rastejam abaixo de titânicas palmeiras e mergulham em águas negras e asquerosas de lagos soturnos. Agora os répteis desapareceram. Animal algum habita a superfície, apenas nas profundas águas, claramente visíveis a mim, formas obscuras movem-se lentamente sobre a vegetação pútrida.
“As formas estão se tornando cada vez mais simples. São unicelulares agora. Tudo sobre mim são ângulos — estranhos ângulos que não tem paralelos na Terra. Estou muito aterrorizado.”
“Há um abismo de seres que homem algum jamais suspeitou.”
Eu encarei. Chalmers levantou-se e estava gesticulando impotentemente seus braços. “Estou passando por ângulos desconhecidos; estou me aproximando — ah, um horror que inflama disso.”
“Chalmers!” gritei. “Quer que eu interfira?”
Ele moveu sua mão direita rapidamente a frente do rosto, como que para esconder uma visão incomunicável. “Ainda não!” berrou. “Continuarei. Devo ver — o que — está — além — “
Um suor frio pairou de sua testa e seus ombros tremeram espasmodicamente. “Além da vida há” — seu rosto acinzentou de terror — “coisas que não consigo vislumbrar. Movem-se lentamente através dos ângulos. Incorpóreos, eles rastejam vagarosamente em ângulos inadmissíveis.”
Foi então que se tornou perceptível o odor da sala. Era pungente, um odor indescritível, tão nauseante que quase não suportei. Caminhei apressadamente até a janela e abri-a. Quando retornei pra perto de Chalmers e vi seus olhos por pouco não desmaiei.
“Eu acho que eles me descobriram!” ele esperneou. “Eles estão virando-se indolentemente na minha direção.”
Ele estava tremendo horrivelmente. Por um momento ele lançou as mãos no ar. Então suas pernas cederam e ele caiu para frente, babando e lamentando-se.
“Observei em silencio enquanto ele se arrastava através do chão. Ele não mais era um homem. Seus dentes foram expostos enquanto salivava pelos cantos da boca.
“Chalmers.” Vociferei “Chalmers, pare! Pare agora. Consegue me ouvir?”
Como em resposta ao meu apelo ele começasse a emitir sons convulsivos roucos que não se assemelhava a nada, nem mesmo ao latido de um cão. Começou uma espécie de contorção hedionda em um círculo sobre a sala. Eu o curvei e o agarrei pelos ombros. Violentamente, desesperadamente, eu o sacudi. Ele virou a cabeça e bateu no meu pulso. Fiquei horrorizado, mas não ousei libertá-lo por medo de que ele se destruísse em um paroxismo de raiva.
“Chalmers,” murmurei, “você deve parar. Não há nada nessa sala que pode te ferir. Compreende?”
Continuei a balançá-lo e avisá-lo, gradualmente sua insanidade esvaiu do rosto. Tremendo compulsivamente, ele se amarrotou em um monte grotesco no tapete chinês.
Carreguei ele até o sofá e ajeitei ele. Suas características estavam emaranhadas em dor, e eu sabia que ele estava lutando de forma tola para fugir dessas memórias abomináveis.
“Uísque,” ele murmurou. “Você encontrará um frasco no armário, ao lado da janela na gaveta acima, à esquerda.”
Quando entreguei o frasco os dedos seguraram com força até ficarem azuis. “Quase me pegaram,” ele ofegou. Ele bebeu o estimulante em goles desvairados, gradualmente recuperando a cor de volta ao rosto.
“Essa droga é o demônio em si!” Berrei.
“Não foi a substância.” Lamentou.
Seus olhos não aparentavam mais insanidade, mas ele ainda retinha o olhar de uma alma perdida.
“Eles me farejaram a tempo.” Clamou ele. “Eu fui longe demais.”
“Como eles eram?” Falei pra animá-lo.
Ele se ajeitou para frente e segurou meu braço. Estava tremendo terrivelmente. “Palavra sequer em nossa língua pode revelar-lhes!” sussurrou roucamente. “Eles são simbolizados vagamente no mito da Queda, e de uma forma obscena que ocasionalmente é encontrada marcada em gravuras antigas. Os gregos tinham um nome para eles, que encobria sua iniquidade vital. A árvore, a serpente e a maçã — estes são os símbolos vagos de um mistério horrível.
Sua voz elevou-se para um grito. “Frank, Frank, um ato terrível e indizível foi feito no início. Antes do tempo, a escritura, e a partir da escritura — “
Ele tinha se erguido e estava andando histericamente na sala. “As sementes da escritura se movem através de ângulos em intervalos de tempo reduzidos. Elas estão famintas e sedentas!”
“Chalmers.” Eu implorei que se acalmasse. “Estamos vivendo na terceira década do Vigésimo Século.”
“Eles são esguios e sedentos!” gritou ele. “Os Cães de Tindalos!”
“Chalmers, devo telefonar para um médico.”
“Um médico não pode me ajudar agora Eles são horrores da alma, e ainda assim” — Ele escondeu a face nas mãos e lamentou-se — “eles são reais, Frank. Eu os vi por um momento horrível. Por um momento eu estive do outro lado. Fiquei em pé nas margens palidamente cinzas além do tempo e do espaço. Em uma luz terrível que não era luz, em um silêncio gritante, eu os vi.
“Todo o Mal do Universo residia em seus esguios corpos esfomeados. Ou tinham eles corpos? Os vi apenas por um relance; não tenho certeza. Porém eu os escutei respirar. Por um momento indiscernível eu senti sua respiração no meu rosto. Eles viraram na minha direção e eu fugi gritando. Em um momento singular eu escapei gritando através do tempo. Eu fugi por quintilhões de anos.
“Mas eles me farejaram. Homens despertam neles voracidades cósmicas. Escapamos, por um momento, da profanidade que os rodeia. Eles anseiam por aquilo que em nós é puro, que surgiu da escritura imaculada. Há uma parte de nós que não jaz na escritura que nos torna odiáveis a eles. Mas não pense que eles são literalmente, um mal prosaico. Eles estão bem além do bom e mal como sabemos. Eles são aquilo que no início não se purificaram. Através da escritura eles se tornaram as entidades da morte, receptáculos da impureza. Mas eles não são malignos no nosso sentido porque nas esferas que habitam e se locomovem não há pensamento, moral, certo ou errado como compreendemos. Meramente o puro e o corrupto. A corrupção expressa-se através dos ângulos: a pureza através das curvas. Homem. A parte pura, deriva das curvas. Não gargalhe. Eu disse literalmente.”
Me levantei e busquei meu chapéu. “Estou terrivelmente pesaroso por você, Chalmers,” disse a ele, enquanto caminhava para a porta. “Mas não pretendo ficar e ouvir tanta bobagem. Enviarei meu médico para te cuidar. Ele é um senhor, bom homem e não se ofenderá se você o mandar para os infernos. Porém espero que respeite o conselho dele. Uma semana de repouso em um bom sanatório deve beneficiar você imensuravelmente.”
Ouvi-o rir enquanto descia pelas escadas, mas foi tão obsceno que me afetou até eu lacrimejar.
— 2 —
Quando Chalmers me telefonou na manhã seguinte meu primeiro impulso foi desligar imediatamente. Seu pedido foi tão incomum com a voz tão selvagem e alucinada que temi que qualquer participação minha com ele resultaria em um atentado a minha própria sanidade. Mas não duvidei da genuinidade de seu sofrimento, quando ele colapsou completamente notei ele soluçar por cima da linha e decidi atender seu pedido.
“Muito bem,” falei. “Irei imediatamente e trarei a argamassa.”
A caminho da residência de Chalmers parei na loja de ferragens e comprei nove quilos de argamassa Parisiense. Quando adentrei o cômodo do meu amigo ele estava agachado próximo a janela olhando a parede oposta com olhos febris e assustados. Me notando ele se levantou e agarrou o pacote de argamassa com uma avidez que me espantou. Ele havia retirado todos os móveis do cômodo e agora aparentava uma desolação.
“É apenas concebível que possamos atrasá-los!” afirmou, “Mas devemos trabalhar rapidamente. Frank, há um escadote no salão. Traga-o aqui imediatamente. E depois vá buscar um balde d’água.”
“Motivo?” murmurei.
Ele se virou agilmente e havia um ímpeto no seu rosto. “Pra misturar na argamassa, seu idiota.” Berrou. “Pra misturar na argamassa que irá salvar nossos corpos e almas de uma contaminação inominável. Pra misturar a argamassa que salvará o mundo de — Frank, eles devem ser mantidos pra fora!”
“Quem?” murmurei.
“Os Cães de Tindalos!” ele murmurou. “Eles somente nos alcançarão por ângulos. Devemos eliminar qualquer ângulo dessa sala. Devo rebocar todos os cantos, todas as cavidades. Devemos transformar essa sala de modo a parecer o interior de uma esfera.”
Soube que seria inútil convencê-lo. Fui trazer o escadote, Chalmers fundiu a argamassa, e por três horas trabalhamos. Tampamos os quatro cantos das paredes, do chão ao teto, arredondando também qualquer cavidade da janela.
“Devo permanecer nesse quarto até eles retornarem ao seu tempo,” afirmou quando finalizamos a tarefa. “Quando notarem que o farejo os levará através das curvas eles irão embora. Eles irão voltar de onde vieram esfomeados e raivosos de insatisfação com maldade que havia no início, antes do tempo, além do espaço.”
Ele acenou com a cabeça gentilmente e acendeu um cigarro. “Foi bondade sua ajudar.” Ele disse.
“Você não buscará um médico Chalmers?” Eu supliquei.
“Talvez — amanhã,” ele murmurou. “Por agora eu devo observar e esperar.”
Chalmers sorriu desanimadamente “Sei que você supõe que estou insano,” ele disse. “Você tem uma mente sagaz porém prosaica, não concebe que uma entidade que não depende da existência da força ou matéria. Mas você já se perguntou, meu amigo, que força e matéria são meramente barreiras da percepção impostas pelo tempo e espaço? Quando se conhece, como eu sei, que espaço e tempo são idênticos e que são ambos ilusórios porque são simplesmente manifestações deficientes de uma realidade superior, não se busca mais no mundo visível uma justificativa para tais mistérios e terrores de seres.”
Me levantei e caminhei até a porta.
“Desculpe-me.” Ele berrou. “Não tinha intenção de te ofender. Você tem um intelecto exemplar, mas eu — eu tenho o de um super-humano. É apenas natural que eu esteja ciente de suas limitações.”
“Ligue-me quando precisar de mim,” falei, e desci as escadas dois passos de cada vez. “Eu enviarei meu médico pra você imediatamente,” murmurei, pra mim mesmo. “Ele é um maníaco irremediável, só os céus sabem o que acontecerá se alguém não cuidar dele logo.”
— 3 —
O seguimento é uma condensação de dois anúncios que foram reportados no Jornal Partridgeville para o dia 5 de julho, 1928:
Terremoto balança o Distrito Financeiro
As duas da manhã um tremor de severidade incomum quebrou muitas vidraças na Praça Central e desorganizou completamente os sistemas de eletricidade e ferrovias. O tremor foi sentido nos bairros periféricos e no campanário da Primeira Igreja Batista em Angell Hill (projetada por Christopher Wren em 1717) foi completamente demolido. Os bombeiros estão agora tentando apagar um incêndio que ameaça destruir a fábrica de cola de Partridgeville. Uma investigação é prometida pelo prefeito e uma tentativa imediata será feita para fixar a responsabilidade por esta ocorrência desastrosa.
ESCRITOR OCULTISTA ASSASSINADO POR HÓSPEDE DESCONHECIDO
Crime terrível na praça central
Morte de Halpin Chalmers Envolta em Mistério
As 9 da manhã de hoje, o corpo de Halpin Chalmers, autor e jornalista, foi encontrado em um cômodo vazio acima da Joalheria Smithwick e Isaac, número 24 da Praça Central. A investigação do médico legista revelou que o quarto havia sido alugado e mobiliado ao Sr. Chalmers em 1º de maio, e que ele mesmo havia descartado os móveis há quinze dias. Chalmers foi autor de vários livros recônditos sobre temas ocultos, e membro do Grupo Bibliográfico. Ele residia anteriormente no Brooklyn, Nova York.
As 7 da manhã. O Sr. L. E. Hancock, que ocupava o apartamento oposto ao de Chalmers na Smithwick e Isaac, sentiu um odor peculiar quando abriu sua porta pra trazer seu gato e a edição matinal do Partridgeville Gazette. O odor por ele descrito era extremamente ácido e nauseante, ele afirma que era tão forte nas proximidades do quarto de Chalmers que ele foi obrigado a segurar o nariz quando se aproximou daquela seção do corredor.
Estando prestes a retornar ao próprio apartamento, pensou que possa ter ocorrido de Chalmers ter acidentalmente esquecido de desligar gás da cozinha. Ficando bastante alarmado pela ideia, ele decidiu investigar, quando após sucessivas batidas na porta de Chalmers não lhe trouxe resposta ele notificou o gerente. Este então abriu a porta pelo uso da chave mestra, rapidamente adentraram o recinto de Chalmers. O cômodo estava esvaziado de móveis, e Hancock afirma que o que visualizou no chão pela primeira vez, enregelou seu coração e o do gerente. Sem falar nada, caminhou até a janela aberta e olhou o prédio oposto por cinco minutos.
Chalmers estava no chão deitado de costas no centro da sala. Completamente nu, seu peito e braços estavam cobertos de um peculiar pus ou fluído. A cabeça estava grotescamente acima do peito. Tinha sido decepada completamente do corpo, as feições estavam torcidas e dilaceradas e horrivelmente desfiguradas. Em nenhum lugar havia marcas de sangue.
O quarto estava em um estado impecável. As interseções das paredes, teto e piso haviam sido grossamente manchadas de argamassa Parisiense, mas em intervalos havia fendas e quebradiças, alguém as agrupou no piso envolta do homem assassinado de modo a formar um perfeito triangulo.
Perto do corpo estavam algumas folhas de papel amarelo queimado. Estes estavam registrados desenhos geométricos fantásticos e rabiscadas apressadamente várias frases. Quase ilegíveis eram as rasuras e de conteúdo tão absurdo que não forneciam pistas do possível criminoso. “Estou esperando e observando,” escreveu Chalmers. “Estou próximo a janela e observo as paredes e teto. Não creio que possam me alcançar. Mas devo estar receoso com os Doels. Talvez eles possam ajudar eles a atravessar. Os Sátiros ajudarão, eles podem atravessar pelos círculos escarlates. Os gregos sabiam como prevenir isso. Um grande pesar termos esquecido tanto.”
Em outra folha, a mais queimada dos sete ou oito fragmentos encontrados pelo Detetive Sargento Douglas (da Reserva de Partridgeville), foi rascunhado o seguinte:
“Bom Deus, a argamassa está saindo! Um tremendo choque desprendeu a argamassa que está caindo. Um terremoto talvez! Eu não poderia antecipar isso. A sala está escurecendo. Devo telefonar pro Frank. Será que ele me alcançara a tempo? Devo tentar. Irei recitar a fórmula Einsteiniana. Devo — Deus! Eles estão atravessando! Eles estão atravessando! Fumaça escorre dos vãos da parede. Suas línguas — AHHH — ”
Na opinião do Detetive Douglas. Chalmers estava envenenado com algum químico obscuro. Ele enviou espécimes da estranha gosma achada no corpo de Chalmers para os Laboratórios Químicos de Partridgeville; esperando que as respostas lancem uma nova luz em um dos casos mais misteriosos dos últimos anos. Reportou também que Chalmers havia um convidado na tarde precedente ao terremoto é certeza, pois seu vizinho ouviu claramente um baixo murmúrio de conversa no quarto do primeiro quando ele passou por ele a caminho das escadas. As suspeitas apontam fortemente para este visitante desconhecido e a polícia está se esforçando diligentemente para descobrir sua identidade.
— 4 —
Reportagem de James Morton, químico e bacteriologista:
Caro Sr. Douglas:
O fluído que me enviaste para análise é o mais peculiar que examinei. Relembra protoplasma vivo, porém é destituído das conhecidas substâncias que a compõem chamadas Enzimas. Enzimas catalisam reações químicas ocorrentes nas células vivas, quando uma célula morre elas se desintegram por hidrolise. Sem enzimas, protoplasmas possuem vitalidade duradoura, ou seja, imortalidade. Enzimas são os componentes negativos, por assim dizer, de organismos unicelulares, que são a base da vida. Que matéria viva consegue subsistir sem enzimas biólogos enfatizam que não. No entanto essa substância que me enviou está viva e que lhe falta esses corpos “indispensáveis”. Pelo bom Deus, senhor, você consegue perceber que maravilhosas perspectivas isso pode gerar?
— 5 —
Excerto retirado de Os Vigilantes Secretos pelo póstumo Halpin Chalmers:
E se, paralelo à vida como conhecemos, haja outra vida que não sucumbe, que careça dos elementos que destroem nossa vida? Talvez em outra dimensão haja uma diferente força da que gere nossa vida. Talvez essa força emita energia, ou algo similar a mesma, que perpasse de uma desconhecida dimensão onde esta cria uma forma de vida celular em nossa dimensão. Ah, eu andei observando suas manifestações. Eu conversei com eles. No meu cômodo a noite conversei com os Doels. Nos meus sonhos vi seu criador. Fiquei em pé na costa escura além do tempo e da matéria e avistei. Isso se move através de curvas estranhas e ângulos ultrajantes. Algum dia viajarei no tempo e encontrá-lo-ei face a face.
Você pode ler essa história no original pelo Cthulhu Files
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