[V.A. Artigo] Passeios pelo Mundo Antigo
(Homero e seu Guia, William Adolphe Bouguereau [1874])
“Precisamos antes, a meu ver, dar ao nosso exame uma direção na qual já fizemos um desvio e consultar os poetas, pois no caminho da sabedoria, estes são para nós como pais e guias.”
— Platão, Lísis, 213e
Esse artigo vai ser composto de passagens breves sobre a relação do homem antigo pré-escrita, Pólis e moeda(mesmo ela se desenvolvendo nos séculos VII e VI A.C, não era comum ainda), em que o mundo e a história eram registradas pelos poetas, cujo canto era todo o registro histórico-sagrado das civilizações do momento e um pouco do seu desenvolver.
A Cosmovisão Arcaica
Como JAA Torrano explicita no seu estudo “O Mundo Como Função de Musas”, trata-se de primeiramente, versar sobre o Inefável, a experiência Sagrada a qual pretende estender páginas tentando articular o que seria a função de uma poesia arcaica “Uma canção composta quando o pensamento racional começava a pré-figurar-se”¹ e que busca desempenhar a vivência (na época de suas composições pelos poetas) nas pessoas “Arcaicas” (palavra que deve ser dissipada de seu sentido como povo primitivo ou como configura-se as filosofias da história, positivismo e outras vertentes que julgam-se deter o último estágio da humanidade i.e modernidade iluminista como epicentro da verdade racional) e que deve-se entendê-las como Mircea Eliade propõe: O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma “história verdadeira” porque sempre se refere a realidades.”²
Junto disso leva-se como função que os cantos têm um pressuposto implícito a ideia de que toda relação cósmica (Deuses, Semideuses com as pessoas — Mitos) age como uma Arkhé, isso é “constitui um Princípio inaugural, constitutivo e dirigente de toda experiência da palavra poética.”³
¹ Hesíodo, Teogonia, Estudo de JAA Torrano, página 15, 2009.
² Apud, Caio Bezarias, página 48, 2021.
³ Hesíodo, página 21.
A Verdade
Nos anos de Homero-Hesíodo (Século VII-IX A.C.) um momento em que o poder da Memória (Mýnemosine) era regente e estabelecida e quando não lembrada; as Musas re-estabeleciam-na pela voz do poeta para as populações, (Musa Kleio — Entendida como Glória ou Fama, Musa da História que era seu domínio teofânico) tirando do Reino do Esquecimento (Lesmosyne). A ligação com o Divino nessa época era a fonte de quase toda informação que inspirava os poetas a versar, como Hesíodo declama em seus textos — Teogonia e Os Trabalhos e os Dias¹ — , com isso enfatizavam a Presença Numinosa dos Deuses, que em toda a sua manifestação podem revelar verdades ontofânicas sobre algum aspecto social ou histórico da humanidade na qual os Deuses são atores/atrizes para encenar uma verdade — Mitos, Épicos Gregos, Teatro, Música etc… — . Nos tempos antigos não existia a noção de uma autoridade humana², tudo era-lhes des-velado ou des-ocultado (Alethéia), não prevalece aqui o sentido psicológico, mas, o sentido como “uma força Numinosa de ocultação”³ como se fosse um ato divino de mediar-se num centro de oposições Memória — Esquecimento (Alethéia — Lesmosyne), no centro das revelações perdidas, o poeta se encaminha a versar, ou melhor, profetizar verdades passadas e futuras, pois os poetas nada inventam mas tomam emprestado das Musas o direito de falar sobre o Reino das verdades eternas.
¹ Um ponto de destaque sobre este trabalho, consultando um estudo feito por Luiz Otávio Montavaneli: “A palavra aqui empregada e que traduzi como verdade é [etétyma], diferente de [alethéa], que é mais frequente […] os autores pesquisados são unânimes em admitir que elas não são sinônimas.” A relação entre as duas se dá no passo que [alethéa] refere-se a fatos ditos e/ou realizados por Deuses (ou poeticamente, Musas) e [etétyma] a verdades ditas pela experiência dos poetas (Hesíodo no caso d’Os Trabalhos e os Dias. Hesíodo ainda declama a presença das Musas — consequentemente de Zeus) pra conferir força e veracidade a seus dizeres.
² Hesíodo, Estudo de JAA Torrano, página 21–3. Este trecho refere-se especificamente a Homero e Hesíodo, antes da Pólis.
³ Idem, página 25.
Sobre o Uso de Mitos
Pra qualquer pessoa comum, não imersa em conhecimentos de religião, deixarei essa passagem digna de nota de algumas ideias sobre teologia essencialmente pagã:
“O fato dos mitos serem divinos pode ser observado através daqueles que os usaram. Os mitos foram usados por poetas inspirados, pelos melhores filósofos, por aqueles que estabeleceram os mistérios e pelos próprios deuses nos oráculos.[…] Assim sendo, os mitos representam os próprios deuses e a sua bondade — sujeita sempre à distinção do dizível e do indizível, o revelado e o não revelado, o que é claro e o que é oculto[…] Pois pode-se chamar o mundo de um mito, no qual corpos e coisas são visíveis, mas as almas e mentes ocultas. Além disso, desejar ensinar a todos toda a verdade sobre os deuses produz desdém nos tolos, pois eles não podem entender e não possuem zelo pelo que é bom, enquanto que ocultar a verdade através de mitos previne o desdém do tolo e força os bons a praticar filosofia.”
— Salústio, Sobre os Deuses e o Cosmos, Capítulo III
O papel do mito para os antigos tinha uma função imanente Numinoso-pedagógica para com a população, desde os que mais creram nos mitos de forma literal até os potenciais filósofos que poderiam filosofar a respeito das verdades alegóricas dos Deuses, isso já avançará qualquer um na questão helênica.
Os Mitos como sendo uma criação dos primórdios da humanidade, está em contato com todo o passado humano e assim dirige-se a toda geração posterior. Carregam força ontológico-metafísica que só poderia se expressar numa linguagem poética, “Poético é o estar-aí de seu fundamento”¹ é entregar sua essência pelo nome, isso é verdadeiro por ser o cerne do ser-histórico que se estabelece no trecho do tempo que se abre ao expor o nome — e consequentemente — a sua essência. pois é o meio mais capaz de expor algo que a mente pode supor mas apenas ao coração e intuição captar, isso é, a experiência de transcender através de epifânias com o Sagrado exposto dentre as vozes proféticas de seu poeta, todo poeta é o diagnosticador da saúde de seu tempo, em um tempo em que eles eram a fonte de quase tudo fora do comum (cotidiano da população), isso é, a vivência próxima do Divino.
Os poetas com suas poesias foram notadamente, uma das primeiras formas de comunicar seu conhecimento, através de técnicas próprias pra serem relembradas facilmente, a poesia tem um poder de induzir muito com pouco, de encarnar na própria história ao atuar as vozes de seus personagens, garantindo-lhes uma força intensa de integrar seus ouvintes nela.
Dito isso, todo poeta está relacionado ao seu tempo e contexto, Homero incita na Iliada, a função de glorificar o guerreiro, que se joga ao campo de batalha por honra e saque, tal arquétipo homérico não é pleno em todos os heróis, Odisseu, sabe que a guerra não é tão desejável quanto o lar, tenta não abarcar nessa aventura mas falha, logo após os eventos, agora na Odisséia, Odisseu (ou Ulisses) é o arquétipo do herói sábio, que não se encontra na opção de ir violentamente a frente, mas, astuciosamente. Hesíodo, tempos depois vai na contramão do que Homero representa, trabalhando já com o seu momento histórico pra se servir de oposição ao arquétipo anterior, com seu mito das Raças, a organização cósmica a qual de fato estamos inseridos. Da raça de Ouro a atual raça de Ferro que corta quase todos os laços diretos com os Deuses, como na penúltima raça — a dos Heróis semideuses — ao que Homero canta, Hesíodo transforma o meio do qual Homero se utilizou pra compor seus épicos, em uma realidade centrada na justiça e no homem comum do campo, que abarca aqui como os feitos do Trabalho e Justiça (que se fundem em um só).
Isso influenciou a civilização grega como fundação das relações socio-políticas que se tomavacomo modelo de como ordenar as relações numa época de mudanças emergentes. A sapiência dos grandes tutores da civilização ocidental.
¹ Heidegger, pg. 53
Poderio Poético-Mitológico
A influência dos poetas não deve ser considerado como proposital além dos efeitos imediatos de poetizar aos populachos das formações pré-Pólis, Hesíodo tanto quanto Homero, não imaginariam que seus cantos derivassem a instituição da Cidade-Estado que imperou na Grécia e, como efeito cumulativo, decorresse (como suponho junto a Montavaneli) na construção da grande civilização Helênica, isso foi feito através do poder que essas histórias detém, não deve ser subestimado, pois, séculos e séculos atrás, homens caminhavam com suas vidas simples indo falar suas Re-velações, hoje, muitos consideram Literatura, mas, ela penetra na psiquê histórica e se estabelece dialogando seja com o entretenimento, seja pelo seu poder Simbólico e até Esotérico, Platão se utilizou desses mitos, Aristóteles também clamava que o amante dos mitos também era filósofo pois ela trata da maravilhação em si, causa do próprio filosofar.¹
Proponho que também não só os mitos greco-romanos sejam assim, outras mitologias podem ter semelhanças e serem tão influentes quanto, mas, decorrente de sua fama (ou melhor, a-fama) podem revelar-se como um conjunto superficiamente heterogêneo, mas, profundamente homogêneo com outras culturas primordiais.
¹ Aristóteles, Metafísica I, página 214.
Somos meros imitadores dos Deuses.
Bibliografia:
Aristóteles, Metafísica I, Os Pensadores, Abril Cultural, 1973.
Hesíodo, Teogonia, Estudo de JAA Torrano, Iluminuras, 2009.
Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, Estudo de Montavaneli — Mitologar é Também Filosofar — , Odysseus Editora, 2011. PDF
Heidegger, Martin, Explicações da Poesia de Hölderlin, UnB Editora, 2013.
Sobre os Deuses e o Cosmos, Tradução de Nogueira Souza
(É uma boa fonte de informação apresentada de modo geral por Salústio; receio apenas que seu entendimento dos mitos materiais egípcios se equivoque por não haver os conhecido bem ou lido Os Mistérios de Jâmblico o qual, foi estudar com os egípcios.)
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